Tribunal de Justiça do Estado da Bahia
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PRIMEIRA TURMA RECURSAL - PROJUDI

PADRE CASIMIRO QUIROGA, LT. RIO DAS PEDRAS, QD 01, SALVADOR - BA
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PROCESSO Nº 0010928-79.2020.8.05.0103

ÓRGÃO: 1ª TURMA RECURSAL DOS JUIZADOS ESPECIAIS

CLASSE: RECURSO INOMINADO

RECORRENTE: IZABELLE MARTINS LACERDA ROCHA

ADVOGADO: JOSY LUISA DOS SANTOS SOUZA

RECORRIDO: IFOOD COM AGENCIA DE RESTAURANTES ONLINE S A

ADVOGADO: NILSON VALOIS COUTINHO NETO

ORIGEM: 3ª Vara do Sistema dos Juizados - ILHÉUS

RELATORA: JUÍZA NICIA OLGA ANDRADE DE SOUZA DANTAS



JUIZADO ESPECIAL. DIREITO DO CONSUMIDOR. RECURSO INOMINADO. IFOOD. APLICATIVO DE DELIVERY DE ALIMENTOS. EXIGÊNCIA DE PEDIDO COM VALOR MÍNIMO. PRÁTICA ABUSIVA. VIOLAÇÃO DOS ARTS. 39, I E IX; 51, IV, § 1º, III, DO CDC. VENDA CASADA CONFIGURADA. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA REFORMADA. DANOS MORAIS IN RE IPSA CONFIGURADOS E ORA FIXADOS EM R$ 1.000,00. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

1. No caso dos autos, a parte autora tentou adquirir um lanche no valor de R$ 11,00, contudo, foi impedida de finalizar sua compra pela exigência de realização de compra com valor mínimo de R$ 15,00.

2. Digno de nota que o valor da entrega (R$ 18,00) não foi considerado no cômputo do valor do pedido, o que necessariamente condicionava a consumidora a adquirir outro produto.

3. A exigência de valor mínimo de consumação configura a prática de venda casada, com violação aos arts. 39, I e IX, 51, IV, § 1º, III, do CDC.

4. A venda casada `consiste no prejuízo à liberdade de escolha do consumidor decorrente do condicionamento, subordinação e vinculação da aquisição de um produto ou serviço (principal - "tying") à concomitante aquisição de outro (secundário - "tied"), quando o propósito do consumidor é, unicamente, o de obter o produto ou serviço principal`. REsp 1.737.428/RS.

5. Evidenciada a prática abusiva de venda casada, são devidos danos morais `in re ipsa`, sendo ora arbitrada a indenização no patamar de R$ 1.000,00 (hum mil reais), em atenção ao caráter punitivo-pedagógico, e em observância aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade.

RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. REFORMA DA SENTENÇA PARA FIXAR INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS DE R$ 1.000,00.

RELATÓRIO

A parte autora alega que tentou realizar a compra de um sanduíche `SUB VEGETARIANO 15 CM` no estabelecimento comercial denominado `Subway`, no valor de R$ 11,00 e que, com a taxa cobrada pela entrega, totalizaria o montante de R$ 29,00. Narra que não conseguiu finalizar o pedido, uma vez que o estabelecimento exigia que a compra fosse realizada com pedido mínimo de R$ 15,00 (excluída a taxa de entrega). Diante da prática de venda casada, veio a juízo requerer indenização por danos morais.

Devidamente citada, a acionada não apresentou defesa escrita e não compareceu à audiência de conciliação.

A sentença objurgada decretou a revelia e reconheceu a prática abusiva da acionada, contudo, julgou improcedente o pleito indenizatório por não vislumbrar lesão apta a ensejar condenação.

Insatisfeita, a parte autora ingressou com recurso inominado, pugnando exclusivamente pela fixação de indenização por danos morais em razão da venda casada.

Foram oferecidas contrarrazões.

VOTO

Com o devido respeito à Ilustre Magistrada sentenciante, a hipótese dos autos reclama reforma da sentença.

É o art. 39, I, do CDC, que disciplina a prática abusiva da venda casada no Direito do consumidor:

Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:

I - condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos;


O que pretende a norma é vedar que o fornecedor submeta a venda de um produto à necessária aquisição de outro sem que haja justa causa para tanto, como, por exemplo, uma dependência ou relação de ordem técnica.

O Superior Tribunal de Justiça na Edição nº 74 de sua ferramenta de Jurisprudência em Teses já esclareceu o seguinte: `Considera-se abusiva a prática de limitar a liberdade de escolha do consumidor vinculando a compra de produto ou serviço à aquisição concomitante de outro produto ou serviço de natureza distinta e comercializado em separado, hipótese em que se configura a venda casada`. Julgados: REsp 1331948/SP; REsp 1558086/SP; REsp 1397870/MG; REsp 384284/RS; REsp 804202/MG.

No julgamento do REsp 1.737.428/RS, em que se discutia a abusividade da ¿taxa de conveniência¿, a Ministra Nancy Andrighi explica em seu voto o conceito de venda casada em lição de clareza meridiana:


RECURSO ESPECIAL. AÇÃO COLETIVA DE CONSUMO. DIREITO DO CONSUMIDOR. ESPETÁCULOS CULTURAIS. DISPONIBILIZAÇÃO DE INGRESSOS NA INTERNET. COBRANÇA DE "TAXA DE CONVENIÊNCIA". EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. NÃO INDICAÇÃO. SÚMULA 284/STF. PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR. CLÁUSULAS ABERTAS E PRINCÍPIOS. BOA FÉ OBJETIVA. LESÃO ENORME. ABUSIVIDADE DAS CLÁUSULAS. VENDA CASADA ("TYING ARRANGEMENT"). OFENSA À LIBERDADE DE CONTRATAR. TRANSFERÊNCIA DE RISCOS DO EMPREENDIMENTO. DESPROPORCIONALIDADE DAS VANTAGENS. DANO MORAL COLETIVO. LESÃO AO PATRIMÔNIO IMATERIAL DA COLETIVIDADE. GRAVIDADE E INTOLERÂNCIA. INOCORRÊNCIA. SENTENÇA. EFEITOS. VALIDADE. TODO O TERRITÓRIO NACIONAL. 1. Cuida-se de ação coletiva de consumo na qual se pleiteia, essencialmente: a) o reconhecimento da ilegalidade da cobrança de "taxa de conveniência" pelo simples fato de a recorrida oferecer a venda de ingressos na internet; b) a condenação da recorrida em danos morais coletivos; e c) a condenação em danos materiais, correspondentes ao ressarcimento aos consumidores dos valores cobrados a título de taxa de conveniência nos últimos 5 (cinco) anos. 2. Recurso especial interposto em: 11/04/2016; conclusão ao Gabinete em: 03/08/2017; aplicação do CPC/15. 3. O propósito recursal é determinar se: a) ocorreu negativa de prestação jurisdicional; b) a disponibilização da venda de ingressos de espetáculos culturais na internet é facilidade que efetivamente beneficia os consumidores; c) existe abusividade na cobrança de "taxa de conveniência" aos consumidores; d) ocorre venda casada pela disponibilização desse serviço associado à aquisição do ingresso; e e) ocorreram danos morais de natureza coletiva. 4. A ausência de expressa indicação de obscuridade, omissão ou contradição nas razões recursais enseja o não conhecimento do recurso especial. 5. A essência do microssistema de defesa do consumidor se encontra no reconhecimento de sua vulnerabilidade em relação aos fornecedores de produtos e serviços, que detêm todo o controle do mercado, ou seja, sobre o que produzir, como produzir e para quem produzir, sem falar-se na fixação de suas margens de lucro. 6. O CDC adotou formas abertas e conceitos indeterminados para definir as práticas e cláusulas abusivas, encarregando o magistrado da tarefa de examinar, em cada hipótese concreta, a efetiva ocorrência de referidas práticas ilegais. 7. A boa-fé objetiva é uma norma de conduta que impõe a cooperação entre os contratantes em vista da plena satisfação das pretensões que servem de ensejo ao acordo de vontades que dá origem à avença, sendo tratada, de forma expressa, no CDC, no reconhecimento do direito dos consumidores de proteção contra métodos comerciais coercitivos ou desleais bem como práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos ou serviços (art. 6º, IV, do CDC). 8. Segundo a lesão enorme, são abusivas as cláusulas contratuais que configurem lesão pura, decorrentes da simples quebra da equivalência entre as prestações, verificada, de forma objetiva, mesmo que não exista vício na formação do acordo de vontades (arts. 39, V, 51, IV, § 1º, III, do CDC).9. Uma das formas de violação da boa-fé objetiva é a venda casada (tying arrangement), que consiste no prejuízo à liberdade de escolha do consumidor decorrente do condicionamento, subordinação e vinculação da aquisição de um produto ou serviço (principal - "tying") à concomitante aquisição de outro (secundário - "tied"), quando o propósito do consumidor é, unicamente, o de obter o produto ou serviço principal. 10.A venda casada "às avessas", indireta ou dissimulada consiste em se admitir uma conduta de consumo intimamente relacionada a um produto ou serviço, mas cujo exercício é restringido à única opção oferecida pelo próprio fornecedor, limitando, assim, a liberdade de escolha do consumidor. Precedentes. 11. O CDC prevê expressamente uma modalidade de venda casada, no art. 39, IX, que se configura em razão da imposição, pelo fornecedor ao consumidor, da contratação indesejada de um intermediário escolhido pelo fornecedor, cuja participação na relação negocial não é obrigatória segundo as leis especiais regentes da matéria.12. A venda do ingresso para um determinado espetáculo cultural é parte típica e essencial do negócio, risco da própria atividade empresarial que visa o lucro e integrante do investimento do fornecedor, compondo, portanto, o custo básico embutido no preço. 13. Na intermediação por meio da corretagem, como não há relação contratual direta entre o corretor e o terceiro (consumidor), quem deve arcar, em regra, com a remuneração do corretor é a pessoa com quem ele se vinculou, ou seja, o incumbente. Precedente. 14. A assunção da dívida do fornecedor junto ao intermediário exige clareza e transparência na previsão contratual acerca da transferência para o comprador (consumidor) do dever de pagar a comissão de corretagem. Tese repetitiva. 15. Na hipótese concreta, a remuneração da recorrida é integralmente garantida por meio da "taxa de conveniência", cobrada nos moldes do art. 725 do CC/02, devida pelos consumidores que comprarem ingressos em seu meio virtual, independentemente do direito de arrependimento (art. 49 do CDC). 16. A venda pela internet, que alcança interessados em número infinitamente superior de do que a venda por meio presencial, privilegia os interesses dos produtores e promotores do espetáculo cultural de terem, no menor prazo possível, vendidos os espaços destinados ao público e realizado o retorno dos investimentos até então empregados e transfere aos consumidores parcela considerável do risco do empreendimento, pois os serviços a ela relacionados, remunerados pela "taxa de conveniência", deixam de ser arcados pelos próprios fornecedores. 17. Se os incumbentes optam por submeter os ingressos à venda terceirizada em meio virtual (da internet), devem oferecer ao consumidor diversas opções de compra em diversos sítios eletrônicos, caso contrário, a liberdade dos consumidores de escolha da intermediadora da compra é cerceada, limitada unicamente aos serviços oferecidos pela recorrida, de modo a ficar configurada a venda casada, nos termos do art. 39, I e IX, do CDC.18. A potencial vantagem do consumidor em adquirir ingressos sem se deslocar de sua residência fica totalmente aplacada pelo fato de ser obrigado a se submeter, sem liberdade, às condições impostas pela recorrida e pelos incumbentes no momento da contratação, o que evidencia que a principal vantagem desse modelo de negócio - disponibilização de ingressos na internet - foi instituída em seu favor dos incumbentes e da recorrida. 19. In casu, não há declaração clara e destacada de que o consumidor está assumindo um débito que é de responsabilidade do incumbente - produtor ou promotor do espetáculo cultural - não se podendo, nesses termos, reconhecer a validade da transferência do encargo (assunção de dívida pelo consumidor). 20. Se, por um lado, o dano moral coletivo não está relacionado a atributos da pessoa humana (dor, sofrimento ou abalo psíquico) e se configura independentemente da demonstração de prejuízos concretos ou de efetivo abalo moral, de outro, somente ficará caracterizado se ocorrer uma lesão a valores fundamentais da sociedade e se essa vulneração ocorrer de forma injusta e intolerável. 21. Na espécie, a ilegalidade verificada não atinge valores essenciais da sociedade, tampouco possui o atributo da intolerabilidade, configurando a mera infringência à lei ou ao contrato em razão da transferência indevida de um encargo do fornecedor ao consumidor, o que é insuficiente para sua caracterização. 22. Os efeitos e a eficácia da sentença coletiva não estão circunscritos a lindes geográficos, mas aos limites objetivos e subjetivos do que foi decidido, levando-se em conta, para tanto, sempre a extensão do dano e a qualidade dos interesses metaindividuais postos em juízo, razão pela qual a presente sentença tem validade em todo o território nacional. Tese repetitiva. 23. Recurso especial parcialmente conhecido e, no ponto, parcialmente provido. (STJ - REsp: 1737428 RS 2017/0163474-2, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 12/03/2019, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 15/03/2019). (grifos postos).



In casu, restou configurada a prática da venda casada, uma vez que a consumidora tentou adquirir um lanche no valor de R$ 11,00, contudo, foi impedida de finalizar sua compra pela exigência de realização de compra com valor mínimo de R$ 15,00, sem a apresentação de justa causa para tal.

É de se salientar que o valor da entrega (R$ 18,00) não foi considerado no cômputo do valor do pedido, o que necessariamente condicionava a consumidora a adquirir outro produto.

Devidamente citada para defender-se e apresentar a justificativa para tal prática, a acionada quedou-se inerte, tendo sido decretada a sua revelia.

Digno de nota que notícias da imprensa dão conta que o PROCON-BA já notificou o IFOOD e pediu esclarecimentos acerca da exigência de valor mínimo nos pedidos, o que denota que a acionada tem plena ciência de que sua prática está a violar as normas de consumo1 2.

A fragilidade das razões da acionada demonstra e corrobora a veracidade dos fatos apresentados na exordial, e, em consequência, restou evidenciada a má prestação de serviço por parte da ré.

O dano moral in re ipsa se configura quando é desnecessária a comprovação do direito, pois este se presume existente em virtude da ocorrência de determinado fato, como restou evidenciado nestes autos.

Como sabido, a indenização por danos morais é um meio de mitigar o sofrimento, sob forma de conforto, e não o pagamento de um preço pela dor ou humilhação, não se lhe podendo atribuir a finalidade de enriquecimento, sob pena de transformar em vantagem a desventura ocorrida.

Em relação à forma de fixação do valor de indenização por danos morais, o Des. Luiz Gonzaga Hofmeister do TJ-RS no proc. 595032442, esclarece de forma meridiana:

`O critério de fixação do valor indenizatório, levará em conta tanto a qualidade do atingido, como a capacidade financeira do ofensor, de molde a inibi-lo a futuras reincidências, ensejando-lhe expressivo, mas suportável, gravame patrimonial.`

O próprio STJ firmou entendimento neste sentido:

`A concepção atual da doutrina orienta-se no sentido de que a responsabilização do agente causador do dano moral opera-se por força do simples fato de violação (damnum in re ipsa). Verificado o evento danoso surge a necessidade de reparação, não havendo que se cogitar da prova do prejuízo, se presentes os pressupostos legais para que haja a responsabilidade civil (nexo de causalidade e culpa)¿ (STJ ¿ 4ª T. ¿ REL CESAR ARFOS ROCHA ¿ RT 746/183).

Ainda nesse sentido, apresento o julgado abaixo:

`CIVIL - DANOS MORAIS - FIXAÇÃO DO QUANTUM DEBEATUR - RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. Mantém-se o quantum fixado quando observados os critérios da razoabilidade e proporcionalidade. 2. O dano moral deve compensar a ofensa sofrida e ao mesmo deve servir como fonte de desestímulo para que o seu causador evite a repetição da conduta, observadas as peculiaridades de cada caso concretamente. 2.1. No entanto, não pode ser fonte de enriquecimento, sob pena de ensejar novo dano.` (APC 20050111307374, Terceira Turma Cível, Rel. Des. João Egmont, TJDF DJ 26.04.2007, pág. 90).



Quanto à aquilatação dos danos morais, é pacífico que a fixação da verba reparatória reside no poder discricionário do Julgador, que levará em consideração os detalhes e as características do caso concreto. Na presente hipótese, entendo adequada a fixação da indenização em R$ 1.000,00 (hum mil reais), em atenção ao caráter punitivo-pedagógico e em observância aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade.

Diante do quanto exposto, VOTO no sentido de DAR PROVIMENTO AO RECURSO PARA REFORMAR A SENTENÇA, condenando a parte acionada ao pagamento do valor de R$ 1.000,00 (hum mil reais) a título de danos morais, acrescido de juros de 1% desde a citação e correção monetária desde o arbitramento. Sem custas e honorários eis que vencedor o recorrente.

NICIA OLGA ANDRADE DE SOUZA DANTAS

Juíza Relatora



1 https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2021/06/11/apos-ser-notificado-pelo-procon-ba-ifood-diz-que-entende-que-nao-ha-proibicao-de-fixacao-de-preco-minimo-de-produtos-vendidos.ghtml

2https://aratuon.com.br/noticia/geral/pratica-abusiva-ifood-e-notificado-pelo-procon-da-bahia-por-cobrar-pedido-minimo-para-entrega