PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL  DE JUSTIÇA DO ESTADO DA BAHIA

  Primeira Câmara Cível 



ProcessoAGRAVO DE INSTRUMENTO n. 8001620-61.2021.8.05.0000
Órgão JulgadorPrimeira Câmara Cível
AGRAVANTE: CONG DAS IRMAS FRAN HOSPITALEIRAS DA IMA CONCEICAO
Advogado(s)OTONEY REIS DE ALCANTARA
AGRAVADO: MUNICIPIO DE SALVADOR
Advogado(s): 

 

ACORDÃO

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA. COMBATE À COVID-19 NO MUNICÍPIO DO SALVADOR. REQUISIÇÃO ADMINISTRATIVA. HOSPITAL DA SAGRADA FAMÍLIA. PAGAMENTO DA INDENIZAÇÃO AO FINAL DA REQUISIÇÃO. EXCEPCIONAL MITIGAÇÃO. ESTRANGULAMENTO FINANCEIRO DA RECONHECIDA ENTIDADE FILANTRÓPICA PRESTADORA DE RELEVANTE SERVIÇO DE SAÚDE. TRABALHADORES DESAMPARADOS. VALORES MENSAIS INCONTROVERSOS RECONHECIDOS PELA PRÓPRIA MUNICIPALIDADE. AGRAVO PARCIALMENTE PROVIDO.

A C Ó R D Ã O

Vistos, relatados e discutidos os autos do agravo de instrumento nº 8001620-61.2021.8.05.0000, oriundo da comarca de Salvador, em que figuram, como agravante, Associação das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição – Província de Santa Cruz, e, como agravado, Município do Salvador.

A C O R D A M os Senhores Desembargadores integrantes da Turma Julgadora da Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, por unanimidade, em CONHECER e, no mérito, DAR PARCIAL PROVIMENTO ao agravo de instrumento, pelas razões contidas no voto condutor. 

Sala de Sessões, _____ de __________________ de 2021.

Presidente

Desª. Pilar Célia Tobio de Claro

Relatora

Procurador(a) de Justiça

 1

 

 

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL  DE JUSTIÇA DO ESTADO DA BAHIA

 PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL

 

DECISÃO PROCLAMADA

Dado provimento em parte - Unânime.

Salvador, 16 de Agosto de 2021.

 


PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL  DE JUSTIÇA DO ESTADO DA BAHIA

  Primeira Câmara Cível 

Processo: AGRAVO DE INSTRUMENTO n. 8001620-61.2021.8.05.0000
Órgão Julgador: Primeira Câmara Cível
AGRAVANTE: CONG DAS IRMAS FRAN HOSPITALEIRAS DA IMA CONCEICAO
Advogado(s): OTONEY REIS DE ALCANTARA
AGRAVADO: MUNICIPIO DE SALVADOR
Advogado(s):  

 

RELATÓRIO

Cuida-se de agravo de instrumento interposto pela Associação das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição – Província de Santa Cruz (Hospital da Sagrada Família) contra a decisão proferida pelo juízo da 5ª Vara da Fazenda Pública da comarca de Salvador, que indeferiu a medida liminar requerida na ação ordinária n. 8130715-78.2020.8.05.0001, ajuizada em desfavor do Município do Salvador, após entender que a tutela provisória pretendida pela autora/agravante esgotaria o objeto da ação e implicaria em ordem de pagamento contrária às previsões da Lei n. 8.437/1992 e da Lei n. 9.494/1997.

No agravo, argumentou a entidade hospitalar, em síntese:

- que o Município do Salvador requisitou administrativamente o Hospital da Sagrada Família, com suas benfeitorias, equipamentos e pertenças, com fundamento na Lei n. 13.979/2020, com o objetivo de combater a pandemia da Covid-19 e “prestar o melhor atendimento à população de Salvador”;

- que a paralisação das atividades até então desempenhadas prejudicou por completo a manutenção da entidade filantrópica, que perdeu o poder de gestão sobre seu próprio hospital, os repasses do convênio com o Sistema Único de Saúde (SUS) e os contratos com as operadoras de planos de saúde; implicando também no afastamento profissional de cerca de 400 (quatrocentos) funcionários, que se encontram sem receber seus salários;

- que, embora já vivenciasse uma crise financeira, a requisição administrativa retirou-lhe toda a sua renda, deixando um enorme passivo fiscal, previdenciário, trabalhista e cível sem expectativa concreta de gestão satisfativa, sobretudo porque a municipalidade não pagou qualquer parcela até o momento e não prestou qualquer auxílio aos seus funcionários;

- que a requisição violou o direito social à alimentação dos funcionários da entidade filantrópica, que não possuem mais condições básicas para uma vida digna;

- que a despeito da previsão legal de pagamento da indenização somente após o fim da requisição administrativa, a própria municipalidade conduziu diversas reuniões, tratativas e negociações reconhecendo a possibilidade de se efetivar um pagamento mensal, de modo a assegurar minimamente o direito dos empregados da entidade;

- que é possível a concessão de medida liminar contra a Fazenda Pública, já que a pretensão jurídica intenciona salvaguardar o direito à vida, à saúde da coletividade e à dignidade humana.

Requereu, liminarmente, a antecipação da tutela recursal para compelir o Município do Salvador a pagar, mensalmente, até findar a requisição administrativa, o valor ‘incontroverso’ de R$ 865.681,79 (oitocentos e sessenta e cinco mil, seiscentos e oitenta e um reais e setenta e nove centavos), além da integralidade das parcelas vencidas. No mérito, pugnou pelo provimento do recurso instrumental, com a confirmação da medida antecipatória.

O recurso fora distribuído à Primeira Câmara Cível, cabendo-me, por sorteio, a relatoria.

A medida de urgência foi postergada para depois do contraditório e do opinativo da douta Procuradoria de Justiça.

A municipalidade argumentou que a requisição administrativa foi realizada na forma da lei, diante da situação de emergência sanitária vivenciada, com o objetivo de salvaguardar o interesse público; que as normas jurídicas que disciplinam a requisição administrativa preveem que o pagamento da indenização somente se dê ao final da requisição; e que é legalmente vedada a concessão de tutela de urgência nos moldes em que requeridos na exordial. Requereu o não provimento da insurgência.

A douta Procuradoria de Justiça manifestou-se pela manutenção dos efeitos da decisão impugnada, com o não provimento do recurso instrumental.

É o que me cumpre relatar. 

Salvador, _____ de __________________ de 2021.

Desª. Pilar Célia Tobio de Claro

Relatora

 1


PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL  DE JUSTIÇA DO ESTADO DA BAHIA

  Primeira Câmara Cível 



Processo: AGRAVO DE INSTRUMENTO n. 8001620-61.2021.8.05.0000
Órgão Julgador: Primeira Câmara Cível
AGRAVANTE: CONG DAS IRMAS FRAN HOSPITALEIRAS DA IMA CONCEICAO
Advogado(s): OTONEY REIS DE ALCANTARA
AGRAVADO: MUNICIPIO DE SALVADOR
Advogado(s):  

 

VOTO

Presentes os requisitos intrínsecos e extrínsecos de admissibilidade, conheço do recurso interposto.

O art. 5º, inciso XXV, da CF/1988 previu o instituto da requisição administrativa, através do qual o Poder Público pode se utilizar de propriedade particular, em caso de iminente perigo público, assegurada ulterior indenização ao proprietário, caso haja dano:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…) XXV - no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;

Como se percebe, diferentemente do procedimento da desapropriação, em que a indenização é prévia (art. 5º, inciso XXIV, da CF/1988), segundo a previsão constitucional na requisição administrativa o pagamento é efetuado posteriormente.

A dura medida administrativa, que mitiga o direito à propriedade particular, fundamenta-se na supremacia do interesse público sobre o privado, de modo a privilegiar a coletividade em detrimento dessa ou daquela pessoa física ou jurídica, em situações excepcionalíssimas de extrema gravidade, como guerras e pandemias. Com a ideia de melhor resguardar o bem comum e o interesse social, tolera-se constitucionalmente a invasão ao patrimônio particular, com ulterior indenização dos prejuízos causados.

Com lastro na referida norma constitucional e com o propósito de combater especificamente a pandemia da Covid-19, foi editada a Lei n. 13.979/2020, prevendo diversas medidas emergenciais, dentre as quais se inclui justamente a requisição administrativa de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, com posterior pagamento de indenização justa:

Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: (...) VII - requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa;

Foi nesse contexto que o Município do Salvador editou o Decreto n. 32.275/2020 e requisitou administrativamente o Hospital da Sagrada Família, com suas benfeitorias e pertenças, no intuito de transformá-lo em um hospital destinado exclusivamente a atender pacientes diagnosticados com a Covid-19, doença dramática que levou a óbito cerca de 4 milhões de pessoas em todo o mundo em apenas um ano e meio.

Avaliou a municipalidade, no exercício de seu poder discricionário, que a requisição administrativa do Hospital da Sagrada Família seria necessária para regular adequadamente os leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) disponíveis na cidade do Salvador para o tratamento da pandemia no âmbito local.

Sobreleva ressaltar, desde logo, que a requisição administrativa em si não foi controvertida na presente demanda, ou seja, a associação autora não impugnou judicialmente a legalidade ou o mérito administrativo do ato requisitório, mas apenas o método de quantificação, a natureza dos valores indenizatórios e o pagamento apenas ao final do procedimento administrativo.

Quanto ao pleito de pagamento mensal de valores indenizatórios, que constitui o único objeto do presente recurso instrumental, a entidade filantrópica expropriada apresentou uma série de argumentos consistentes para fundamentar sua pretensão jurídica, a impor no mínimo uma reflexão profunda sobre o tema em discussão.

A requisição em comento recaiu sobre reconhecida entidade filantrópica que atua há mais de 77 (setenta e sete) anos prestando relevantíssimo serviço de saúde à população soteropolitana e baiana, sobretudo à população mais carente. Embora confessadamente a agravante já enfrentasse significativa crise financeira antes da pandemia, ao que nos consta a situação tornou-se extraordinariamente insustentável, a ponto de infelizmente se cogitar a insolvência civil da entidade assistencial.

O passivo milionário, que engloba dívidas das mais diversas naturezas (fiscais, previdenciárias, civis e trabalhistas), vem acumulando com vigor há mais de um ano, já que a entidade teve sua unidade hospitalar requisitada, juntamente com todas as suas benfeitorias e pertenças, ficando completamente sem receita e sem a menor condição de planejar adequadamente a satisfação de seus elevados débitos. A situação é delicadíssima, pois não se tem ideia de quando encerrará a requisição administrativa municipal, tornando dramática a sobrevivência da entidade assistencial.

Além do aspecto particular da entidade filantrópica, que vê sua própria existência em risco, temos centenas de funcionários e colaboradores que foram afastados de seus postos de trabalho e solenemente desprezados pela municipalidade, passando a viver com o benefício emergencial previsto na Lei n. 14.020/2020.

Com efeito, ao que nos consta, a grande maioria dos funcionários do Hospital da Sagrada Família não foi aproveitada pela requisição administrativa, tendo em vista que a municipalidade optou por contratar a Associação Obras Sociais Irmã Dulce (OSID) para gerir e prestar o serviço de saúde na referida unidade hospitalar.

Entrevejo, nesse contexto, que referidas circunstâncias assumem relevantíssima gravidade diante do quadro fático atual, pois (i) sem as condições materiais de desempenhar a atividade social para a qual foi constituída, já que perdeu o imóvel e todos os equipamentos hospitalares a ele vinculados; (ii) sem auferir qualquer receita mensal, já que não consegue prestar seus serviços; (iii) e sem a menor previsão de receber qualquer numerário da municipalidade, já que não se tem ideia de quando findará a requisição administrativa; a entidade agravante vê suas dívidas aumentarem mês a mês, com a incidência dos encargos moratórios, e seus funcionários desamparados financeiramente, sobrevivendo apenas com o benefício emergencial previsto na Lei n. 14.020/2020.

A controvérsia, portanto, reclama exame ponderado dos valores constitucionais em jogo, pois apesar de reservar mais um hospital ao atendimento exclusivo da Covid-19, em prestígio à coletividade e à saúde pública; a contrapartida aparente é o estrangulamento financeiro de uma entidade que há décadas vem prestando valioso serviço social complementar às obrigações constitucionais da própria municipalidade. Não se trata de uma empresa privada exploradora de atividade econômica com foco na obtenção de lucro, mas de uma associação filantrópica de atuação consagrada na saúde pública municipal.

A própria municipalidade parece reconhecer a peculiaridade do caso concreto, pois os autos demonstram que foram realizas diversas reuniões com o propósito de acordar um valor mensal mínimo a ser adimplido pelo Poder Público, com ulterior encontro de contas, o que se apresenta como uma solução louvável ao trágico imbróglio que se sucedeu à requisição. Consta até mesmo uma nota técnica preliminar expedida pelo próprio município prevendo cenários e estimando valores a serem adimplidos mensalmente pelo ente público; e o reconhecimento, em sede de contestação e contrarrazões de agravo de instrumento, de que seria incontroverso o valor mensal de R$ 375.535,50 (trezentos e setenta e cinco mil, quinhentos e trinta e cinco reais e cinquenta centavos).

No contexto peculiar e excepcionalíssimo do caso sob análise, afigura-se razoável concluir, ainda que em juízo de aparência, que a requisição administrativa em questão poderá suprimir o mínimo existencial da entidade filantrópica de saúde, a exigir proteção jurisdicional que impeça o excesso do ato administrativo requisitório, em observância ao princípio da proporcionalidade. Em análise apriorística, me parece que a requisição administrativa não pode ser utilizada de tal modo que implique na insolvência civil de uma associação social sem fins lucrativos, a impor o encerramento de suas relevantes atividades filantrópicas.

Portanto, sopesando a iniciativa da própria municipalidade em formalizar um acordo para pagamento de parcelas mensais, após diversas reuniões e tratativas, inclusive mediadas pelo Ministério Público; ao lado da dramática, aflita e tocante situação financeira vivenciada pela renomada entidade filantrópica; julgo que a boa-fé, a lealdade, a dignidade, a responsabilidade social e a proporcionalidade, sob o viés da proibição do excesso Estatal, autorizam mitigar as vedações cautelares contidas nas Lei n. 8.437/1992 e n. 9.494/1997 e impõem o deferimento provisório do pagamento mensal do valor incontroverso de R$ 375.535,50 (trezentos e setenta e cinco mil, quinhentos e trinta e cinco reais e cinquenta centavos), retroativo ao ato requisitório, a ser objeto de encontro de contas ao final da requisição administrativa.

Ante o exposto, voto no sentido de DAR PARCIAL PROVIMENTO ao agravo de instrumento, para determinar que a municipalidade pague à entidade agravante, em contrapartida à requisição administrativa do Hospital da Sagrada Família, o valor incontroverso de R$ 375.535,50 (trezentos e setenta e cinco mil, quinhentos e trinta e cinco reais e cinquenta centavos), sob pena de sequestro judicial dos valores respectivos.

Os valores retroativos à data da requisição administrativa deverão ser pagos no prazo de 20 (vinte) dias, contados da intimação do presente julgamento; e as parcelas vincendas deverão ser pagas até o dia 10 (dez) de cada mês.

Salvador, _____ de __________________ de 2021.

Desª. Pilar Célia Tobio de Claro

Relatora

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