PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DA BAHIA Órgão Especial EMENTA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PARTE FINAL DO ART. 33 DA LEI Nº. 14/2021, DO MUNICÍPIO DE CRISTÓPOLIS. EM DESCONFORMIDADE COM O ART. 5º, CAPUT, DA CARTA MAGNA, COM OS ARTS. 2º, III, 4º, CAPUT, 146, CAPUT E §2º, TODOS DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DA BAHIA. PROIBIÇÃO GENERALIZADA DE USO DE ARMA DE FOGO POR GUARDA MUNICIPAL. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE PROCEDENTE. I – O Requerente questiona a compatibilidade da parte final do art. 33 da Lei Complementar nº. 14/2021 do Município de Cristópolis/BA (“com exceção do uso de arma de fogo”), sancionada em 16/03/2021, com as normas constantes no art. 5º, caput, da Constituição Federal, e nos arts. 2º, III, 4º, caput, e 146, caput e §2º, todos da Constituição do Estado da Bahia, indicando, ainda, a jurisprudência atual do Supremo Tribunal Federal. O dispositivo legal contestado dispõe sobre a proibição do uso de arma de fogo pelos guardas municipais, o que, conforme a Requerente, estaria em desconformidade com o entendimento exposto pelo Plenário da Suprema Corte ao julgar as ADC 38 e ADIns 5.538 e 5.948, indicando ter restado estabelecido que “poderá ser conferido aos servidores integrantes das Guardas Municipais a autorização para porte de arma de fogo, desde que atendidos os requisitos e condições estabelecidas na Lei nº 10.826/2003 e no Decreto nº 9.847/2019”. Assim, a expressão contida na norma questionada deve ser retirada, tendo em vista a Suprema Corte ter declarado a sua inconstitucionalidade “à luz da equidade e isonomia, a proibição da limitação da posse de arma de fogo pelos guardas municipais caso se tomasse unicamente o critério populacional/demográfico, como o previsto no art. 6º, IV da Lei nº 10.826/2003 – justamente o que ocorreu e aqui explicitamente se comprova”. Destaca que o entendimento do Supremo Tribunal Federal ponderou a possibilidade de ocorrer as limitações, “desde que erigidos critérios fundamentados e objetivos, in casu não presentes”. II - O douto representante da Procuradoria Geral do Estado da Bahia manifestou-se pela procedência da ação, pois a expressão “com exceção do uso de arma de fogo”, constante na parte final do art. 33 da Lei Municipal nº. 14/2021, “incorre nos mesmos vícios da redação original do art. 6º, III, do Estatuto do Desarmamento (Lei n.º 10.826/2003). Afinal, essa redação original foi seu único fundamento. Portanto, ela contraria os princípios da razoabilidade, isonomia e eficiência”. A Prefeitura Municipal de Cristópolis manifestou-se pela improcedência da presente ação, ressaltando a competência e autonomia do Município para legislar sobre assuntos de interesse local (art. 30, I, da Constituição Federal), afirmando que a proibição ao uso de arma de fogo pela guarda municipal baseia-se em uma preferência administrativa diante da realidade específica do ente federativo. Salienta que o entendimento exposto pela Suprema Corte nas jurisprudências citadas pela Requerente não tornou obrigatório o uso de arma de fogo pelos referidos agentes públicos, mas, tão somente, declarou inconstitucional a restrição adstrita ao tamanho da população municipal. Por fim, destaca o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça no sentido de não serem conferidas as prerrogativas da polícia ostensiva e/ou judiciária à guarda municipal. III – A Constituição Federal, assim como a Estadual da Bahia, em seus arts. 144, §8º e 146, §2º, respectivamente, preveem que “os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, na forma da lei”. A Lei nº. 13.022/14, por sua vez, dispõe sobre o Estatuto Geral das Guardas Municipais, instituindo normas gerais para tais organizações, estabelecendo no art. 2º que: “Incumbe às guardas municipais, instituições de caráter civil, uniformizadas e armadas conforme previsto em lei, a função de proteção municipal preventiva, ressalvadas as competências da União, dos Estados e do Distrito Federal”, assim como define as suas competências (arts. 4º e 5º) e estipula que “o Município pode criar, por lei, sua guarda municipal” (art. 6º, caput). O Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido de que o conteúdo da referida legislação não viola a autonomia dos municípios, pois se limita a fixar critérios padronizados para a instituição, organização e exercício das guardas municipais (STF. Plenário. ADI 5.780/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 01/7/2023). IV - Da mesma forma, a Lei nº. 13.675/18, que “institui o Sistema Único de Segurança Pública (Susp)” (art. 1º), prevê as guardas municipais como integrantes operacionais do referido sistema de segurança pública, cabendo aos Estados e Municípios a implementação dos “respectivos programas, ações e projetos de segurança pública, com liberdade de organização e funcionamento, respeitado o disposto nesta Lei”, conforme seu art. 9º, caput, §2º, VII, e §4º. Acerca do tema, o Tribunal Supremo já firmou entendimento no sentido de que “as Guardas Municipais executam atividade de segurança pública (art. 144, § 8º, da CF), essencial ao atendimento de necessidades inadiáveis da comunidade (art. 9º, § 1º, CF), pelo que se submetem às restrições firmadas pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do ARE 654.432 (Rel. Min. EDSON FACHIN, redator para acórdão Min. ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 5/4/2017)” (STF. Plenário. RE 846854, Rel. Min. Luiz Fux, Relator p/ Acórdão Min. Alexandre de Moraes, julgado em 01/08/2017). Portanto, não restam dúvidas de que as guardas municipais, quando devidamente criadas e instituídas, são reconhecidamente órgãos de segurança pública (STF. Plenário. ADPF 995/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 28/8/2023). V - Como bem citado pelo Requerente, o Supremo Tribunal Federal manifestou-se acerca do tema ora em debate quando do julgamento da ADC nº. 38 e das ADIns nºs. 5.538 e 5.948. Em tais julgados, definiu-se como inconstitucional a vedação até então constante no art. 6º, III, da Lei nº. 10.826/03, assim como o conteúdo integral constante no inciso IV daquele mesmo dispositivo legal, retirando a previsão de proibição de porte de arma de fogo para os integrantes das guardas municipais, independentemente do tamanho populacional do Município. Tal posicionamento justifica-se na intenção de resguardar os princípios da eficiência e da igualdade no combate à criminalidade (STF - ADI: 5538 DF 4001179-50.2016.1.00.0000, Relator: ALEXANDRE DE MORAES, Data de Julgamento: 01/03/2021, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 18/05/2021). VI – Saliente-se que a Lei nº. 10.826/03, em seu art. 6º, §3º, condiciona o porte de arma de fogo para as guardas municipais “à formação funcional de seus integrantes em estabelecimentos de ensino de atividade policial, à existência de mecanismos de fiscalização e de controle interno, nas condições estabelecidas no regulamento desta Lei, observada a supervisão do Ministério da Justiça”. Ademais, o Decreto nº. 11.615/23 regulamenta a legislação acima mencionada, “para estabelecer regras e procedimentos relativos à aquisição, ao registro, à posse, ao porte, ao cadastro e à comercialização nacional de armas de fogo, munições e acessórios”, tratando das guardas municipais, especificamente, nos arts. 57 e seguintes. VII - Assim, a despeito do quanto alegado pelo Prefeito de Cristópolis em sua manifestação, não há que se falar em desrespeito à autonomia municipal para legislar sobre os assuntos de interesse local. Em verdade, o que parece se buscar com a presente ação é garantir que a lei municipal esteja de acordo com as normativas estaduais e constitucionais até aqui delineadas. Da mesma forma, ao declarar-se a inconstitucionalidade do trecho constante na parte final do art. 33 da Lei Complementar nº. 14/2021 (com exceção do uso de arma de fogo) não significa conceder de forma imediata e irrestrita porte do artefato bélico a todos os integrantes da guarda municipal. Isto porque cabe ao Município, dentro da realidade local e dos parâmetros legais, a exemplo daqueles constantes no §3º do art. 6º da Lei nº. 10.826/03, estabelecer os cenários em que a referida concessão será possível. Inclusive, é nesse sentido o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (AgRg no AREsp n. 1.756.520/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 22/6/2021, DJe de 28/6/2021). VIII - Diante do exposto, julga-se pelo conhecimento e pela procedência desta Ação Direta de Inconstitucionalidade para declarar a inconstitucionalidade da parte final do art. 33 da Lei Complementar Municipal nº. 14/2021 do Município de Cristópolis/BA, consistente na expressão “com exceção do uso de arma de fogo”, em conformidade com o art. 6º, III, da Lei nº. 10.826/03. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE CONHECIDA E PROVIDA. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 8030448-96.2023.8.05.0000 – CRISTÓPOLIS/BA. RELATOR: DESEMBARGADOR ESERVAL ROCHA ACÓRDÃO Relatados e discutidos estes autos de Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 8030448-96.2023.8.05.0000, da Comarca de Cristópolis/BA, ajuizada pela PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA. Acordam os Desembargadores integrantes do Tribunal Pleno do Estado da Bahia, à unanimidade, em julgar pelo conhecimento e procedência do pedido formulado, na forma do relatório e do voto constantes dos autos, que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Sala das Sessões, data constante da certidão eletrônica de julgamento. Presidente Desembargador Eserval Rocha Relator Procurador(a)
Processo: DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE n. 8030448-96.2023.8.05.0000
Órgão Julgador: Órgão Especial
AUTOR: MINISTERIO PUBLICO DO ESTADO DA BAHIA
Advogado(s):
REU: MUNICIPIO DE CRISTOPOLIS e outros
Advogado(s):NAOMAR MONTEIRO DE ALMEIDA NETO
ACORDÃO
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DA BAHIA
ÓRGÃO ESPECIAL
DECISÃO PROCLAMADA |
Conhecido e provido Por Unanimidade
Salvador, 2 de Setembro de 2024.
PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DA BAHIA Órgão Especial I - Trata-se de Ação Direta de Inconstitucionalidade, ajuizada pela Procuradoria-Geral de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia, por meio da qual questiona a compatibilidade da parte final do art. 33 da Lei Complementar nº. 14/2021 do Município de Cristópolis/BA (“com exceção do uso de arma de fogo”), sancionada em 16/03/2021, com as normas constantes no art. 5º, caput, da Constituição Federal, e nos arts. 2º, III, 4º, caput, e 146, caput e §2º, todos da Constituição do Estado da Bahia, indicando, ainda, a jurisprudência atual do Supremo Tribunal Federal. A Requerente aduz que a “proibição generalizada do uso de armas de fogo por parte dos prepostos da Guarda Municipal da localidade”, como constante na norma questionada, “não mais se constitui, à luz do quanto orientado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, como uma medida isonômica e promotora do combate à criminalidade organizada e violenta”. Salienta que, “o Plenário da Suprema Corte, quando do julgamento das ADC 38 e ADIns 5.538 e 5.948, de Relatoria do Min. Alexandre de Moraes, invalidou a proibição de porte de armas para guardas municipais de cidades com menos de 50 mil habitantes e, consequentemente, tornou inconstitucional a base para a edição da normativa objurgada”, cujo acórdão transitou em julgado em 27/05/2021. Diante disto, indica ter restado estabelecido que “poderá ser conferido aos servidores integrantes das Guardas Municipais a autorização para porte de arma de fogo, desde que atendidos os requisitos e condições estabelecidas na Lei nº 10.826/2003 e no Decreto nº 9.847/2019”, ressaltando ser “imperiosa a observância do modelo legislativo federal em sede estadual e municipal, especialmente no tocante à hipótese em que mudanças legislativas são instituídas em desconformidade à isonomia que reger o sistema de proteção de bens, serviços e instalações municipais, elemento especial de uniformização da modelagem da Administração Pública no ordenamento jurídico pátrio, e ao qual se vinculam compulsoriamente todos os entes políticos da Federação”. Assim, a expressão contida na norma questionada deve ser retirada, tendo em vista a Suprema Corte ter declarado a sua inconstitucionalidade “à luz da equidade e isonomia, a proibição da limitação da posse de arma de fogo pelos guardas municipais caso se tomasse unicamente o critério populacional/demográfico, como o previsto no art. 6º, IV da Lei nº 10.826/2003 – justamente o que ocorreu e aqui explicitamente se comprova”. Destaca que o entendimento do Supremo Tribunal Federal ponderou a possibilidade de ocorrer as limitações, “desde que erigidos critérios fundamentados e objetivos, in casu não presentes”. O douto representante da Procuradoria Geral do Estado da Bahia manifestou-se pela procedência da ação (ID nº. 57357301), pois a expressão “com exceção do uso de arma de fogo”, constante na parte final do art. 33 da Lei Municipal nº. 14/2021, “incorre nos mesmos vícios da redação original do art. 6º, III, do Estatuto do Desarmamento (Lei n.º 10.826/2003). Afinal, essa redação original foi seu único fundamento. Portanto, ela contraria os princípios da razoabilidade, isonomia e eficiência”. Enfatiza, ainda, que a norma não observa a competência da União para legislar sobre materiais bélicos (arts. 21, V, e 22, XXI, ambos da Constituição Federal, e o art. 6º, III, da Lei nº. 10.826/03). A Prefeitura Municipal de Cristópolis manifestou-se pela improcedência da presente Ação Declaratória de Inconstitucionalidade, ressaltando a competência e autonomia do Município para legislar sobre assuntos de interesse local (art. 30, I, da Constituição Federal), afirmando que a proibição ao uso de arma de fogo pela guarda municipal baseia-se em uma preferência administrativa diante da realidade específica do ente federativo. Salienta que o entendimento exposto pela Suprema Corte nas jurisprudências citadas pela Requerente não tornou obrigatório o uso de arma de fogo pelos referidos agentes públicos, mas, tão somente, declarou inconstitucional a restrição adstrita ao tamanho da população municipal. Por fim, destaca o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça no sentido de não serem conferidas as prerrogativas da polícia ostensiva e/ou judiciária à guarda municipal (ID nº. 58943736). Instada a pronunciar-se, a Procuradoria de Justiça emitiu parecer opinando pela procedência do pedido, declarando-se a inconstitucionalidade “formal e material, do art. 33, parte final, da Lei Complementar Municipal nº 014/2021, do Município de Cristópolis (BA) (expressão “com exceção do uso de arma de fogo”), por ofensa ao art. 5º, caput, da Constituição Federal, bem assim aos arts. 2º, III e 4º, caput e 146, caput e § 2º, da Constituição do Estado da Bahia” (ID nº. 59239346). A Câmara de Vereadores do Município de Cristópolis, apesar de intimada, não se manifestou, conforme certidão acostada no ID nº. 60428436). É o relatório.
Processo: DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE n. 8030448-96.2023.8.05.0000
Órgão Julgador: Órgão Especial
AUTOR: MINISTERIO PUBLICO DO ESTADO DA BAHIA
Advogado(s):
REU: MUNICIPIO DE CRISTOPOLIS e outros
Advogado(s): NAOMAR MONTEIRO DE ALMEIDA NETO
RELATÓRIO
PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DA BAHIA Órgão Especial PRELIMINARES II – Preenchidos os requisitos de admissibilidade do Apelo, conheço o presente recurso. MÉRITO III - O município de Cristópolis, através de sua Câmara de Vereadores, editou a Lei Complementar nº. 14/2021, dispondo sobre a criação da guarda municipal no referido município e a sua regulamentação. O Requerente aduz, no entanto, ter o ente, no art. 33 da mencionada legislação, na sua parte final, disposto normativo em desconformidade com o entendimento do Supremo Tribunal Federal, sendo tal excerto inconstitucional, portanto. Para melhor análise, transcreve-se a seguir o mencionado dispositivo legal (ID nº. 46463655 – fl. 13): CAPÍTULO VII DA PROIBIÇÃO DO USO DE ARMA FOGO Art. 33 - O Município de Cristópolis visando garantir a segurança dos bens, serviços e instalações do Município, bem como a manutenção da ordem, permitirá o uso de todos os equipamentos mencionados na Lei Federal n° 13.022/2104, com exceção do uso de arma de fogo e do incapacito neuromuscular. (grifos nossos). Inicialmente, cumpre realizar breve análise do tema perante a legislação federal. A Carta Magna de 1988 prevê a constituição das guardas municipais pelos Municípios, em seu art. 144, §8º, in verbis: Art. 144 A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: (...) § 8º Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei. (grifos nossos). No mesmo sentido, prevê a Constituição do Estado da Bahia: Art. 146 - A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. (...) § 2º - Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, na forma da lei. A Lei nº. 13.022/14, por sua vez, dispõe sobre o Estatuto Geral das Guardas Municipais, instituindo normas gerais para tais organizações, disciplinando o dispositivo legal constitucional acima mencionado, estabelecendo no art. 2º que: “Incumbe às guardas municipais, instituições de caráter civil, uniformizadas e armadas conforme previsto em lei, a função de proteção municipal preventiva, ressalvadas as competências da União, dos Estados e do Distrito Federal”, assim como definindo as suas competências nos arts. 4º e 5º, e estipulando que “o Município pode criar, por lei, sua guarda municipal” (art. 6º, caput). Quanto à citada lei, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido de que o seu conteúdo não viola a autonomia dos municípios, pois se limita a fixar critérios padronizados para a instituição, organização e exercício das guardas municipais (STF. Plenário. ADI 5.780/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 01/7/2023). Da mesma forma, a Lei nº. 13.675/18, que “institui o Sistema Único de Segurança Pública (Susp) e cria a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS), com a finalidade de preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, por meio de atuação conjunta, coordenada, sistêmica e integrada dos órgãos de segurança pública e defesa social da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, em articulação com a sociedade” (art. 1º), prevê as guardas municipais como integrantes operacionais do Sistema Único de Segurança Pública, cabendo aos sistemas estaduais e municipais a implementação dos “respectivos programas, ações e projetos de segurança pública, com liberdade de organização e funcionamento, respeitado o disposto nesta Lei”, conforme seu art. 9º, caput, §2º, VII, e §4º. Cumpre ressaltar o entendimento já firmando pelo Tribunal Supremo no sentido de que “as Guardas Municipais executam atividade de segurança pública (art. 144, § 8º, da CF), essencial ao atendimento de necessidades inadiáveis da comunidade (art. 9º, § 1º, CF), pelo que se submetem às restrições firmadas pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do ARE 654.432 (Rel. Min. EDSON FACHIN, redator para acórdão Min. ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 5/4/2017)” (STF. Plenário. RE 846854, Rel. Min. Luiz Fux, Relator p/ Acórdão Min. Alexandre de Moraes, julgado em 01/08/2017). Portanto, não restam dúvidas de que as guardas municipais, quando devidamente criadas e instituídas, são reconhecidamente órgãos de segurança pública (STF. Plenário. ADPF 995/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 28/8/2023). Feita esta explanação teórica necessária para melhor exame da matéria aqui debatida, como bem citado pelo Requerente, o Supremo Tribunal Federal manifestou-se acerca do tema quando do julgamento da ADC nº. 38 e das ADIns nºs. 5.538 e 5.948. Em tais julgados, definiu-se como inconstitucional a vedação até então constante no art. 6º, III, da Lei nº. 10.826/03, que “dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas – Sinarm, define crimes e dá outras providências”, assim como o conteúdo integral constante no inciso IV daquele mesmo dispositivo legal. O referido julgamento extraiu da citada norma os termos “das capitais e dos Estados”, “com mais de 500.000 habitantes” e “os integrantes das guardas municipais dos Municípios com mais de 50.000 e menos de 500.000 habitantes, quando em serviço”. Para melhor compreensão, colaciona-se abaixo o texto atualmente vigente do referido dispositivo legal: Art. 6o. É proibido o porte de arma de fogo em todo o território nacional, salvo para os casos previstos em legislação própria e para: (...) III – os integrantes das guardas municipais das capitais dos Estados e dos Municípios com mais de 500.000 (quinhentos mil) habitantes, nas condições estabelecidas no regulamento desta Lei; (Expressões declaradas inconstitucionais pela ADIN 5538) (Vide ADIN 5948) (Vide ADC 38) IV - os integrantes das guardas municipais dos Municípios com mais de 50.000 (cinqüenta mil) e menos de 500.000 (quinhentos mil) habitantes, quando em serviço; (Redação dada pela Lei nº 10.867, de 2004) (Declarado inconstitucional pela ADIN 5538) (Vide ADIN 5948) (Vide ADC 38) Portanto, o que se depreende da leitura da norma acima transcrita é que não há mais previsão de proibição de porte de arma de fogo para os integrantes das guardas municipais, independentemente do tamanho populacional do Município. Importa, ainda, ressaltar a motivação para tal entendimento. O Tribunal Superior assim se manifestou a fim de resguardar os princípios da eficiência e da igualdade no combate à criminalidade, conforme observa-se da jurisprudência a seguir colacionada: CONSTITUCIONAL E SEGURANÇA PÚBLICA. INCONSTITUCIONALIDADE DE NORMAS RESTRITIVAS AO PORTE DE ARMA À INTEGRANTES DE GUARDAS MUNICIPAIS. AUSÊNCIA DE RAZOABILIDADE E ISONOMIA EM CRITÉRIO MERAMENTE DEMOGRÁFICO QUE IGNORA A OCORRÊNCIA DE CRIMES GRAVES NOS DIVERSOS E DIFERENTES MUNICIPIOS. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO. 1. É evidente a necessidade de união de esforços para o combate à criminalidade organizada e violenta, não se justificando, nos dias atuais da realidade brasileira, a atuação separada e estanque de cada uma das Polícias Federal, Civis e Militares e das Guardas Municipais; pois todas fazem parte do Sistema Único de Segurança Pública. 2. Dentro dessa nova perspectiva de atuação na área de segurança pública, o Plenário desta SUPREMA CORTE, no julgamento do RE 846.854/SP, reconheceu que as Guardas Municipais executam atividade de segurança pública (art. 144, § 8º, da CF), essencial ao atendimento de necessidades inadiáveis da comunidade (art. 9º, § 1º, da CF). 3. O reconhecimento dessa posição institucional das Guardas Municipais possibilitou ao Parlamento, com base no § 7º do artigo 144 da Constituição Federal, editar a Lei nº 13.675, de 11/6/2018, na qual as Guardas Municipais são colocadas como integrantes operacionais do Sistema Único de Segurança Pública (art. 9º, § 1º, inciso VII). 4. Se cabe restringir o porte de arma de fogo a integrantes de instituição que faz parte do sistema geral de segurança pública – e esse ponto, em si mesmo, já é bastante questionável –, a restrição teria de guardar relação com o efetivo exercício das atividades de segurança pública, e não com a população do município. 5. As variações demográficas não levam automaticamente ao aumento ou à diminuição do número de ocorrências policiais ou dos índices de violência, estes sim relevantes para aferir a necessidade de emprego de armas ou outros equipamentos de combate à criminalidade (art. 12, inciso III, da Lei n. 13.675/2018). 6. Seja pelos critérios técnico-racional em relação com o efetivo exercício das atividades de segurança pública, número e gravidade de ocorrências policiais, seja pelo critério aleatório adotado pelo Estatuto do Desarmamento número de habitantes do Município, a restrição proposta não guarda qualquer razoabilidade. 7. Ausência de razoabilidade e isonomia em normas impugnadas que restringem o porte de arma de fogo somente aos integrantes de guardas municipais das capitais dos Estados e dos Municípios com mais de 500.000 (quinhentos mil) habitantes e de guardas municipais dos Municípios com mais de 50.000 (cinquenta mil) e menos de 500.000 (quinhentos mil) habitantes, quando em serviço. 8. Ação Direta julgada parcialmente procedente para declarar a inconstitucionalidade do inciso III do art. 6º da Lei 10.826/2003, a fim de invalidar as expressões “das capitais dos Estados” e “com mais de 500.000 (quinhentos mil) habitantes”, e declarar a inconstitucionalidade do inciso IV do art. 6º da Lei 10.826/2003, por desrespeito aos princípios constitucionais da igualdade e da eficiência. (STF - ADI: 5538 DF 4001179-50.2016.1.00.0000, Relator: ALEXANDRE DE MORAES, Data de Julgamento: 01/03/2021, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 18/05/2021) (grifos nossos). Cumpre salientar que a Lei nº. 10.826/03, em seu art. 6º, §3º, prevê que: “A autorização para o porte de arma de fogo das guardas municipais está condicionada à formação funcional de seus integrantes em estabelecimentos de ensino de atividade policial, à existência de mecanismos de fiscalização e de controle interno, nas condições estabelecidas no regulamento desta Lei, observada a supervisão do Ministério da Justiça”. (grifos nossos). Ademais, o Decreto nº. 11.615/23 regulamenta a legislação acima mencionada, “para estabelecer regras e procedimentos relativos à aquisição, ao registro, à posse, ao porte, ao cadastro e à comercialização nacional de armas de fogo, munições e acessórios”, tratando das guardas municipais, especificamente, nos arts. 57 e seguintes. Ora, o que se observa, portanto, é que, a despeito do quanto alegado pelo Prefeito de Cristópolis em sua manifestação (ID nº. 58943736), não há que se falar em desrespeito à autonomia municipal para legislar sobre os assuntos de interesse local. Em verdade, o que parece se buscar com a presente ação é garantir que a lei municipal se encontre de acordo com as normativas estaduais e constitucionais até aqui delineadas. Da mesma forma, ao declarar-se a inconstitucionalidade do trecho constante na parte final do art. 33 da Lei Complementar nº. 14/2021 (com exceção do uso de arma de fogo) não significa conceder de forma imediata e irrestrita porte do artefato bélico a todos os integrantes da guarda municipal. Isto porque cabe ao Município, dentro da realidade local e dos parâmetros legais, a exemplo daqueles constantes no §3º do art. 6º da Lei nº. 10.826/03, estabelecer os cenários em que a referida concessão será possível. Inclusive, é nesse sentido o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, senão vejamos: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. FUNDAMENTOS DA DECISÃO QUE INADMITIU O RECURSO NÃO COMBATIDOS. SÚMULA N. 182 DO STJ. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. O agravante deixou de refutar, especificamente, a incidência da Súmula n. 284 do STF, bem como a não comprovação da divergência jurisprudencial, o que atrai a incidência da Súmula n. 182 do STJ. 2. Não se verifica a possibilidade de conceder ordem de ofício, para absolvição por atipicidade da conduta, pois, mesmo após o julgamento da ADI n. 5.948/DF, o guarda municipal fora de serviço não tem o direito de portar arma de fogo sem certificado de registro ou prévia autorização do órgão competente. 3. Agravo regimental não provido. (AgRg no AREsp n. 1.756.520/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 22/6/2021, DJe de 28/6/2021.) (grifos nossos). Acerca do tema, merece destaque, ainda, manifestação da douta Procuradoria de Justiça em seu parecer, no qual afirma (ID nº. 59239346 – fls. 5/6): (...) O parâmetro orientador desta ação é o fato de que Supremo Tribunal Federal passou a fixar a impossibilidade de proibição absoluta ao porte de armas de fogo para guardas municipais das capitais dos Estados e dos Municípios com mais de 500.000 (quinhentos mil) habitantes, e de guardas municipais dos Municípios com mais de 50.000 (cinquenta mil) e menos de 500.000 (quinhentos mil) habitantes, quando em serviço, por força do princípio da isonomia, declarando inconstitucional o inciso IV, do art. 6º, da Lei nº 10.823/2003 (Estatuto do Desarmamento). Note-se que o fator de discriminação para a vedação absoluta ao porte de armas para os guardas municipais locais baseou-se, unicamente, no critério populacional da edilidade. Nesse aspecto, inclusive, expressamente se pronunciou o Prefeito local, quando da tramitação de procedimento extrajudicial: “(...) A proibição da limitação da posse sa arma de fogo aos guardas municipais, observou apenas o critério populacional/demográfico, previsto na Lei no inciso IV da Lei Federal nº. 10.826/2003. Colocamo-nos à disposição para esclarecimentos adicionais, e, aproveitamos a oportunidade para renovar os protestos de elevada estima. Cristópolis-BA, 23 de setembro de 2022. Gilson Nascimento de Souza Prefeito Municipal” Neste sentido, manifestou-se flagrante contradição com o quanto orientado pelo Supremo Tribunal Federal, uma vez que, como antecipado, e aqui a ser reiterado em mais oportunidade, as proibições ao porte de armas nas municipalidades não podem ocorrer e se baseadas em tal lógica de fundamentação. No julgamento das ADC 38 e das ADIs 5.538 e 5.948, a Suprema Corte declarou inconstitucional, à luz da equidade e isonomia não acolhendo, portanto, teses como autonomia para proibição - posterior à autoridade da decisão da Suprema Corte -, a limitação da posse de arma de fogo pelos guardas municipais caso se tomasse exclusivamente o critério populacional/demográfico, como o previsto no art. 6º, IV da Lei nº 10.826/2003. Assim, quando das informações nesta ADI, não foi apresentado qualquer dado técnico-objetivo, por parte do Poder Público local, que validasse ou justificasse a restrição ao porte de armas na localidade. Ou seja, ainda que o STF, na oportunidade, tenha afastado a tese minoritária de que haveria, à luz da autonomia local, possibilidade de uma proibição absoluta tendo em conta apenas o critério demográfico, estabeleceu, também, que eventuais restrições ao porte teriam “de guardar relação com o efetivo exercício das atividades de segurança pública”. (grifos nossos). Desta feita, entende-se pela inconstitucionalidade da parte final do art. 33 da Lei Municipal nº. 14/2021, de Cristópolis, para extrair do seu teor o texto “com exceção do uso de arma de fogo”. CONCLUSÃO IV - Diante do exposto, julga-se pelo conhecimento e pela procedência desta Ação Direta de Inconstitucionalidade para declarar a inconstitucionalidade da parte final do art. 33 da Lei Complementar Municipal nº. 14/2021 do Município de Cristópolis/BA, consistente na expressão “com exceção do uso de arma de fogo”, em conformidade com o art. 6º, III, da Lei nº. 10.826/03. Sala das Sessões, data constante da certidão eletrônica de julgamento. Presidente Desembargador Eserval Rocha Relator Procurador(a)
Processo: DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE n. 8030448-96.2023.8.05.0000
Órgão Julgador: Órgão Especial
AUTOR: MINISTERIO PUBLICO DO ESTADO DA BAHIA
Advogado(s):
REU: MUNICIPIO DE CRISTOPOLIS e outros
Advogado(s): NAOMAR MONTEIRO DE ALMEIDA NETO
VOTO