PROCESSO Nº 0011977-85.2022.8.05.0039
ÓRGÃO: 1ª TURMA RECURSAL DO SISTEMA DOS JUIZADOS
CLASSE: RECURSO INOMINADO
RECORRENTE: VERA LUCIA DA SILVA PINHEIRO
ADVOGADO: TAYANE BARBARA FERREIRA BARBOSA
RECORRIDO: SUL AMÉRICA SEGUROS DE VIDA E PREVIDÊNCIA S.A
ADVOGADO: ANTONIO EDUARDO GONCALVES DE RUEDA
ORIGEM: 2ª Vara do Sistema dos Juizados - CAMAÇARI
RELATORA: JUÍZA NICIA OLGA ANDRADE DE SOUZA DANTAS
JUIZADO ESPECIAL. DIREITO DO CONSUMIDOR. RECURSO INOMINADO. DECISÃO MONOCRÁTICA (ART. 15, XI E XII, DO REGIMENTO INTERNO DAS TURMAS RECURSAIS E ART. 932, III, IV e V, DO CPC). PLANO DE SAÚDE. QUADRO DE INFERTILIDADE. RELATÓRIO MÉDICO QUE APONTA ENDOMETRIOSE COMO CAUSA DA INFERTILIDADE. RECOMENDAÇÃO MÉDICA DE FERTILIZAÇÃO IN VITRO. CONTRADIÇÃO ENTRE A POSSIBILIDADE DE PLANEJAMENTO FAMILIAR E A EXCLUSÃO DO PROCEDIMENTO MÉDICO DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA. NOVA HERMENÊUTICA CONTRATUAL. CONSTITUCIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS PRIVADOS. ABUSIVIDADE DA CLÁUSULA RESTRITIVA. E. STJ QUE DEFINIU, EM SEDE DE SISTEMÁTICA DE JULGAMENTO DE RECURSOS REPETITIVOS (TEMA 1067) QUE, SALVO DISPOSIÇÃO CONTRATUAL EXPRESSA, OS PLANOS DE SAÚDE NÃO SÃO OBRIGADOS A CUSTEAR O TRATAMENTO DE FERTILIZAÇÃO IN VITRO. MESMO ENTENDIMENTO DO ENUNCIADO 02 DO COLÉGIO DE MAGISTRADOS DOS JUIZADOS ESPECIAIS DO ESTADO DA BAHIA. REGISTRADA A RESSALVA DESTA RELATORA. RECURSO IMPROVIDO. SENTENÇA MANTIDA.
1. A infertilidade humana corresponde a problema de saúde, como reconhecido pelo Conselho Federal de Medicina. A reprodução assistida, consistente no procedimento médico de assegurar a gravidez, está vinculada ao planejamento familiar, cujo regramento constitucional está no art. 226, § 7º, CF/1988. O Estado brasileiro, regulamentando pauta constitucional, reconhece ser direito de todo cidadão o planejamento familiar (art. 1º, Lei nº 9.263/1996).
2. A RN nº 428/2017 atualizou o rol de coberturas obrigatórias dos planos privados de assistência à saúde, prevendo, como de cobertura obrigatória, o que denomina “atividade educacional para planejamento familiar”. Na referida Resolução, há menção expressa de que tais ações compreendem atividades de educação, aconselhamento e atendimento e definição de que o planejamento familiar é um conjunto de ações de regulação de fecundidade para a constituição, limitação ou aumento da prole.
3. Apesar da expressa menção ao Planejamento Familiar, o rol não contemplou os tratamentos de reprodução humana assistida e as diversas técnicas hoje disponíveis para auxiliar a fertilização in vitro, em dissonância interpretativa que deve ser reparada pela interpretação mais favorável ao beneficiário, eis que fundada em argumentos exclusivamente argentários.
4. A exclusão afronta a Lei n.º 9.263/96 que regulamentou o § 7º do artigo 226 da Constituição Federal ao definir planejamento familiar, dispondo no art. 2º que, “para fins desta Lei, entende-se planejamento familiar como o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal.”
5. A Súmula 02/2016 das Turmas Recursais da Bahia tinha a seguinte redação: “É devida a cobertura pelos planos de saúde do procedimento de fertilização in vitro, limitada a 02 (duas) tentativas, em face da configuração da infertilidade como patologia pela OMS". (Aprovado por unanimidade em 22.02.2016 - Turmas Recursais Reunidas TJBA)”. A edição da Súmula 02/2016 das Turmas Recursais da Bahia teve por escopo garantir a reprodução assistida de quem, por ser infértil, não poderia procriar, pois o planejamento familiar tem regramento constitucional no art. 226, § 7º, CF/1988. O Estado brasileiro, regulamentando pauta constitucional, reconhece ser direito de todo cidadão o planejamento familiar (art. 1º, Lei nº 9.263/1996). Vale registro que tal súmula foi revogada pelo Enunciado 02 (DJe n. 2284, de 14/12/18) do Colégio de Magistrados dos Juizados Especiais do Estado da Bahia.
7. Aliás, esta conduta interpretativa teleológica vem sendo aplicada para outros casos de mitigação da força obrigatória das exclusões previstas em contrato e na normatização suplementar, e não poderia ser diferente com a cobertura para a fertilização. Ao se interpretarem as cláusulas de exclusão, é obrigatório considerar a amplitude do significado “planejar” e se buscar atender à finalidade social do contrato e às exigências do bem comum, como previsto no art. 5º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).
8. Não obstante os argumentos acima esposados, o E. STJ, ao julgar o Tema 1067 sob a sistemática dos recursos repetitivos, fixou a seguinte tese: “Salvo disposição contratual expressa, os planos de saúde não são obrigados a custear o tratamento médico de fertilização in vitro.”
9. Registra-se também que o mencionado posicionamento do STJ já tinha sido fixado anteriormente pelo Enunciado 02 (DJe n. 2284, de 14/12/18) do Colégio de Magistrados dos Juizados Especiais do Estado da Bahia.
10. Diante tal contexto, julga-se improcedente a pretensão autoral, porém, expressando-se a ressalva desta relatora.
RECURSO IMPROVIDO. MANTIDA A SENTENÇA QUE JULGOU IMPROCEDENTES OS PEDIDOS.
RELATÓRIO
Relatório dispensado, na forma do Enunciado 92 do FONAJE: “Nos termos do art. 46 da Lei nº 9099/1995, é dispensável o relatório nos julgamentos proferidos pelas Turmas Recursais.”
DECISÃO MONOCRÁTICA
O artigo 15 do Regimento Interno das Turmas Recursais (Resolução nº 02/2021 do TJBA), em seus incisos XI e XII, estabelece a competência do Juiz Relator para julgar monocraticamente as matérias com entendimento já sedimentado pela Turma Recursal ou pela Turma de Uniformização, ou ainda por Tribunal Superior, além da possibilidade de proferir decisão em razão de recurso prejudicado em consonância com o permissivo do artigo 932, incisos III, IV e V, do Código de Processo Civil.
Cabe a transcrição do referido dispositivo do Regimento Interno das Turmas recursais:
Art. 15. São atribuições do Juiz Relator, em cada Turma Recursal:
(…)
XI. negar seguimento, nas Turmas Recursais Cíveis, em decisão monocrática, a recurso inadmissível, improcedente, prejudicado ou em desacordo com súmula ou jurisprudência dominante das Turmas Recursais ou da Turma de Uniformização ou ainda de Tribunal Superior, cabendo Recurso Interno, no prazo de 5(cinco) dias;
XII. dar provimento, nas Turmas Recursais Cíveis, em decisão monocrática, a recurso se a decisão estiver em manifesto confronto com súmula do Tribunal Superior ou jurisprudência dominante do próprio Juizado, cabendo Recurso Interno, no prazo de 5(cinco) dias;
Adentrando ao mérito, a sentença de improcedência não será reformada.
Visando contextualizar a presente discussão, reproduz-se o teor da Súmula 02 das Turmas recursais da Bahia:
“SÚMULA 02/2016: "É devida a cobertura pelos planos de saúde do procedimento de fertilização in vitro, limitada a 02 (duas) tentativas, em face da configuração da infertilidade como patologia pela OMS". (Aprovado por unanimidade em 22.02.2016 - Turmas Recursais Reunidas TJBA)”.
O art. 10 da Lei Federal 9.656/1998, cujo texto se transcreve, institui o Plano de Referência ressaltando as exclusões:
Art. 10. É instituído o plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, [...], exceto:
I - tratamento clínico ou cirúrgico experimental;
II - procedimentos clínicos ou cirúrgicos para fins estéticos, bem como órteses e próteses para o mesmo fim;
III - inseminação artificial
A Lei i nº 11.935, de 11.05.2009, que alterou o art. 35-C, da Lei nº 9.656/1998, tornou obrigatória a cobertura pelos planos de saúde dos procedimentos referentes ao planejamento familiar, que podem ser estendidos à inseminação artificial como se firmou no inicio desta decisão.
Confira-se o texto da norma:
Art. 35-C. É obrigatória a cobertura do atendimento nos casos:
I - de emergência, como tal definidos os que implicarem risco imediato de vida ou de lesões irreparáveis para o paciente, caracterizado em declaração do médico assistente;
II - de urgência, assim entendidos os resultantes de acidentes pessoais ou de complicações no processo gestacional;
III - de planejamento familiar.
A nova lei, aprovada no Senado em março de 2009, prevê que o planejamento familiar, como procedimento coberto como um todo. Anteriormente, o plano só cobria o uso de DIU, a laqueadura e a vasectomia. Agora a projeção familiar e concepção programada também, ou seja, programar ou controlar a natalidade, tem relevância como direito subjetivo à constituição familiar equilibrada.
A edição e reedição do rol de cobertura obrigatória por parte dos planos de saúde revelam a necessidade de inclusão de novos procedimentos que se alinhem à evolução científico terapêutica das diversas possibilidades de cura.
A RN nº 428/2017 atualizou o rol de coberturas obrigatórias dos planos privados de assistência à saúde, prevendo, como de cobertura obrigatória, o que denomina atividade educacional para planejamento familiar. Na referida Resolução há menção expressa de que tais ações compreendem atividades de educação, aconselhamento e atendimento e definição de que o planejamento familiar é um conjunto de ações de regulação de fecundidade para a constituição, limitação ou aumento da prole.
Apesar da expressa menção ao Planejamento Familiar, o rol não contemplou os tratamentos de reprodução humana assistida e as diversas técnicas hoje disponíveis para auxiliar a fertilização in vitro, em dissonância interpretativa que deve ser reparada pela interpretação mais favorável ao consumidor, eis que fundada em argumentos exclusivamente argentários.
Esta previsão de exclusão entra em rota de colisão com o previsto na Lei 9.656/1998, que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde e determina em seu artigo 35-C, inciso III, com a redação que lhe foi dada pela Lei n.º 11.935/2009, ser obrigatória a cobertura de atendimento nos casos de planejamento familiar.
Diante desse cenário, os planos de assistência à saúde, salvo algumas poucas exceções, entendem legitimada a exclusão do procedimento de reprodução assistida e sequer oferecem a seus clientes a possibilidade de contratação de tal cobertura. Também o Estado não é capaz de oferecer de forma satisfatória, meios para que as pessoas inférteis possam, através de Sistema Único de Saúde – SUS, este procedimento.
Há incongruência entre a Resolução 428 e o que estabelecem os artigos 6º e 196 da Constituição Federal e o artigo 35-C, inciso III, da Lei 9.656/98.
Assim, não é difícil se concluir que a Resolução não se adequa a esses ditames constitucionais.
A indicação médica e a conexão do procedimento de fertilização in vitro com o planejamento familiar resultam na possibilidade de ser enquadrado nas coberturas contratualmente asseguradas. Assim, ao se privilegiar a indicação médica em ponderação com as coberturas oferecidas, a necessidade terapêutica da consumidora impõe a interpretação contratual mais benéfica (art. 46, CDC), da mesma forma que se observa a abertura para novas inclusões de procedimentos pelas regulações da ANS.
“Ao qualificar a paternidade de responsável, para fins de planejamento familiar” (art. 226, § 7º), a Constituição Federal entrega ao intérprete a exigência de que o padrão da responsabilidade deve permear o exercício do poder familiar. Ao tratar da procriação por meio natural, essa responsabilidade será alcançada com a adoção dos critérios normativos existentes, para cuja aplicação será importante a determinação da ancestralidade genética, mediante exame científico em que resulte comprovada a descendência. [...]Permitir a reversão dessa responsabilidade, pelo (a) próprio (a) anuente, seria desprezar a relevância de sua conduta, não somente na esfera social, mas, especificamente, no tocante à criação de uma nova vida, para cujo nascimento a emissão da anuência foi indispensável”1.
A jurisprudência tem se revelado a favor deste nosso posicionamento:
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO – MEDICAMENTOS – FERTILIZAÇÃO IN VITRO – FORNECIMENTO – NECESSIDADE – "Constitucional e processual civil. Direito à saúde. Interesse de agir. Pedido administrativo. Desnecessidade. Não se deve cogitar de falta de interesse de agir por não ter a autora efetuado pedido na esfera administrativa, pois não está o cidadão atrelado à referida via para ingresso em juízo, tendo em vista a existência de norma constitucional que prevê o livre acesso ao Poder Judiciário. Fornecimento de medicamentos. Ilegitimidade passiva dos entes públicos. Inocorrência. Responsabilidade solidária de todos os entes da Federação. Arts. 6º, 23, II e 196, Constituição Federal. Precedentes. Irrelevância de os medicamentos não estarem previstos em lista. Precedentes. De acordo com firme orientação do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, o direito à saúde é dever do Estado, lato sensu considerado, a ser garantido modo indistinto por todos os entes da Federação – União, Estados, Distrito Federal e Municípios -, forte nos arts. 6º, 23, II e 196 da Constituição Federal, sendo irrelevante, no mais, a circunstância de os fármacos não integrarem a lista dos medicamentos básicos, excepcionais ou especiais. Reprodução assistida. Infertilidade humana e saúde. Direito do cidadão. Art. 226, § 7º, CF/1988. Infertilidade e saúde. Arts. 6º, 23, II, e 196, CF/1988. A infertilidade humana corresponde a problema de saúde, como reconhecido pelo Conselho Federal de Medicina, não deixando a reprodução assistida, consistente no procedimento médico de assegurar a gravidez, de atender dever do Estado vinculado ao planejamento familiar, cujo regramento constitucional está no art. 226, § 7º, CF/1988. Reconhece o Estado brasileiro, regulamentando pauta constitucional, ser direito de todo cidadão o planejamento familiar (art. 1º, Lei nº 9.263/1996), com o que assumiu prestações de ordem variadas para permitir sua efetivação, inclusive no campo da saúde, atraindo toda a jurisprudência formada em torno dos arts. 6º, 23, II e 196, CF/1988. Se é certo, quanto aqueles que não disponham de condições financeiras, estar prevista cobertura pelo SUS (art. 3º, parágrafo único, Lei nº 9.263/1996), em cujo âmbito instituída a Política Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana Assistida (Portaria nº 426/GM, de 22.03.2005; Portaria nº 388, do Secretário de Atenção à Saúde, de 06.07.2005), no entanto não se pode deixar ao relento casos em que tal atendimento resta impossibilitado ou extremamente difícil. Serventia estatizada e custas processuais. Art. 11, regimento de custas (Lei Estadual nº 8.121/1985). Diferença entre Estado e Município. Não cabe imposição de o Estado pagar as custas processuais, quanto a serventia estatizada, tal qual dispõe, expressamente, o art. 11 do Regimento de Custas. Já quanto ao Município, mostra-se cabível a condenação ao pagamento de custas pela metade, na forma do art. 11, caput, da Lei Estadual nº 8.121/1985, em sua redação original. Cumpre ressalvar, todavia, a isenção total, após a vigência da Lei Estadual nº 13.471/2010. Honorários advocatícios. Condenação do Estado em causa patrocinada pela Defensoria Pública. Impossibilidade. Súmula nº 421 do STJ. Consoante entendimento consolidado do Superior Tribunal de Justiça (Súmula nº 421), sendo a Defensoria Pública órgão do Estado, não se pode recolher honorários sucumbenciais decorrentes de condenação contra a Fazenda Pública Estadual, em causa patrocinada por Defensor Público. Honorários para a defensoria pública. Município. Cabimento. É devida pelo Município verba honorária em causas patrocinadas pela Defensoria Pública, porquanto, ainda que esta seja órgão integrante do Estado do Rio Grande do Sul, não se confunde com a pessoa jurídica do Município." (TJRS – AC 70039644265 – 21ª C.Cív. – Rel. Des. Armínio José Abreu Lima da Rosa – DJe 11.02.2011). (grifos nossos).
PLANO DE SAÚDE COBERTURA CONTRATUAL DE PROCEDIMENTOS NECESSÁRIOS À REALIZAÇÃO DE FERTILIZAÇÃO IN VITRO SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA INCONFORMISMO DA RÉ, OPERADORA DO PLANO DE SAÚDE NÃO ACOLHIMENTO DESNECESSÁRIA DILAÇÃO PROBATÓRIA SENTENÇA VÁLIDA – Há de prevalecer o direito da autora-apelada a ações de regulação da fecundidade que lhe permita constituir sua prole, sendo de todo inválida a cláusula do contrato que desrespeita o comando legal de que os planos de saúde atendam às necessidades correspondentes à materialização do planejamento familiar, expressão certa da dignidade da pessoa humana. Exegese do artigo 35-C, inciso III da Lei 9.656/98 (incluído pela Lei 11.935/09) e dos artigos 1º e 2º da Lei 9.263/96. Recurso desprovido. (TJSP – Ap 0009908-34.2012.8.26.0302 – JAÚ – 9ª CD.Priv. – Rel. Piva Rodrigues – DJe 03.05.2013 – p. 1607).
EMBARGOS DECLARATÓRIOS COM INTUITO DE PREQUESTIONAMENTO – PLANO DE SAÚDE – TUTELA ANTECIPADA – INCIDÊNCIA DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR – COBERTURA DE TRATAMENTO REPRODUTIVO – FERTILIZAÇÃO IN VITRO – IMPOSSIBILIDADE DE INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA DE CLÁUSULA CONTRATUAL DE ADESÃO – NÃO DEMONSTRADAS QUAISQUER DAS CIRCUNSTÂNCIAS DO ART. 535 DO CPC – 1- In casu, todas as questões trazidas à consideração desta E. Câmara foram suficientemente analisadas por ocasião do julgamento, não havendo que se falar em aclaratórios por omissão quando a decisão combatida pronunciou-se expressamente sobre o tema indicado. 2- EMBARGOS REJEITADOS. (TJCE – EDcl 0001347-46.2011.8.06.0000/50000 – Rel. Ademar Mendes Bezerra – DJe 09.10.2012 – p. 38).
Se se está garantido o direito ao controle familiar para evitar super proles com o objetivo de controle populacional e garantia da cidadania é de todo lógico que, também, seja garantido o direito à formação da família através da fertilização in vitro.
A Agência Nacional de Saúde Suplementar já ampliou o rol dos procedimentos médicos que devem ser cobertos pelos planos. Vasectomia, laqueadura e DIU estão na lista. Mas, o rol é exemplificativo, caso contrário, seria necessário editá-la constantemente. Esta publicação reflete uma evolução na amplitude da oferta de coberturas e demonstra que, da mesma forma como ocorreu com a cirurgia bariátrica, que inicialmente não contava com profissionais credenciados, passou a ser um procedimento posto à disposição do consumidor pela maioria das operadoras.
O texto da lei diz apenas “ser obrigatória a cobertura do atendimento” de “planejamento familiar”, não especificando tipos de serviço que serão pagos pelas operadoras.
Neste sentido de interpretação, a introdução do planejamento familiar torna possível o entendimento de que foi garantido acesso a todos os procedimentos. Na área de câncer, a lei também diz que os planos devem cobrir quimioterapia, inclusive ora e domiciliar2. No entanto, quando judicializada a questão, se comprovada conveniência medica do tratamento domiciliar ou de qualquer outro para a cura, está autorizada a mitigação da força obrigatória do contrato com objetivo de garantir seu viés social.
A Lei nº 9.263/1996, no inciso I, Parágrafo único, do seu artigo 3º, regula a assistência à concepção e contracepção, elevando estes procedimentos ao status de direito subjetivo à saúde física e mental, aspirações da pessoa humana que vive em dignidade pessoal e social.
Desde a RN 192/2009, da ANS, revogada pela RN 211/2010, que foi revogada pela RN 338/2013, que, por sua vez, foi revogada pela RN 387/2015, esta sendo revogada pela RN 428/2017, que não se exclui a inseminação como método de controle familiar, apenas se ressaltando que o procedimento não é de cobertura obrigatória.
Sem sombra de dúvida, se o planejamento familiar como um conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal está definida sua abrangência ao direito à personalidade, à família, concretizada pelos laços afetivos dos filhos, responsáveis pelo poder do amor e da união solidarística.
A outra conclusão não se conduz, senão à proteção ao direito subjetivo do cidadão ao acesso aos resultados da evolução científico terapêutica, para projetar sua família ou constituí-la através de métodos ou procedimentos que possibilitem diminuir ou afastar, mesmo que temporariamente, suas disfunções ligadas à infertilidade, que impedem a realização do direito subjetivo à procriação (leia-se à constituição da família, núcleo social de relevância), e, assim, garantir o equilíbrio físico-psíquico, volvendo-o ao estado de paz interior.
Em regra, ter família é estar protegido socialmente pelo afeto, pela continuidade do direito à personalidade, pelo desdobramento de gerações. Mas, é bom ressaltar que ter direito subjetivo à procriação, à constituição da família, não é o mesmo que ter direito à personalidade, pois esta não é um direito, mas um valor (o valor fundamental do ordenamento) e está na base de uma série aberta de situações existenciais, nas quais se traduz a sua incessante e mutável exigência de tutela.
Seguindo nessa esteira, o ordenamento jurídico se lança a oferecer uma tutela cada vez mais ampla aos tratamentos específicos em genética, que, pela sua diversidade, reclama por novas formas de proteção. Este é o objetivo da ciência3.
Rosenvald4 diz que “A inserção do princípio da dignidade da pessoa humana no Título I, como fundamento da República Federativa do Brasil, demonstra a sua precedência - não apenas topográfica, mas interpretativa - sobre todos os demais capítulos constitucionais" [...]"A perpetuidade é decorrência da natureza vitalícia da personalidade. As pretensões alusivas à tutela da pessoa não são passíveis de prescrição ou decadência, ao contrário das consequências patrimoniais delas decorrentes”. (ROSENVALD, 2007, p. 35).
A família contemporânea, estruturada sobre a sólida base da afetividade, deixa de ser somente uma instituição que visa a proteger o grupo formado por seus membros para se tornar um ambiente propício às manifestações dos direitos inerentes à personalidade, ao desenvolvimento das potencialidades de cada um e às diferenças individuais, e a garantir um alargamento de possibilidades, sonhos e ideais de cada uma das pessoas que a integram e nela interagem.
Não há dúvida: a programação familiar, sua estruturação com fins de planejamento estratégico, a utilização de técnicas para manter a saúde deste núcleo e de quem a sustenta e, por que não, a garantia à procriação, com igual relevância da adoção, é um direito equânime a todos os demais que dizem respeito à saúde.
E por estas argumentações, a ciência é a grande mãe elaboradora e protecionista artificial, auxiliada pelo valor constitucional do dever de proteção.
A fertilização in vitro não é um tratamento em fase de amadurecimento, ou que envolva questões polêmicas científicas, mas, de atalho terapêutico seguro e testado que possibilita a geração de filhos para pessoas que pretendem formar o embrião social, a família. A infertilidade é uma doença, como a maioria sem cura.
O direito subjetivo, ao qual sempre se impõe um dever-ser correlato, que, no caso vertente, gera efeitos erga omnes, reúne efeitos com dimensões negativas, atrelados ao dever de respeitar a escolha de ser ou não genitor, como, também, dimensões positivas, que implicam em medidas concretas e hábeis a conferir a real chance de exercer o direito de procriar5 .
A par destas regulações, há de se considerar que a proteção à mulher, ao homem ou ao casal, que não quer ter filhos, tenha sido melhor contemplada pelo legislador administrativo6.
É claro que, no processo de aprovação dos procedimentos, sopesam-se cálculos atuariais e, a julgar pelos "comentários" de beneficiários, há priorização do lucro. Mas, o sobrepujar do lucro ou das perdas deve ser avaliado pelo Julgador, jamais imposto pelas operadoras como método de exclusão aleatória de cobertura, ou, ainda, através do engessamento do elenco de coberturas, preparadas quando da celebração do contratos.
Esta conduta de imobilidade contratual unilateral é indevida, irregular, quebra a natureza sinalagmática do contrato, seu equilíbrio, além de violar a garantia intrínseca da sistemática atualização terapêutico-científica.
Aliás, como se trata de mercado em franco e público crescimento, este mesmo mercado trabalha diuturnamente com a evolução da medicina, porquanto de consideração apartada ou setorializada incabível.
Corrobora esta perspectiva o fato da Lei 9.263/96 garantir, no inciso I, Parágrafo único, do artigo 3º, a assistência à concepção, como atividade básica, para qualquer instância gestora do SUS, o que inclui a ANS, que mantém contrato de gestão com o MS e se integra ao sistema como agência reguladora da saúde privada ou suplementar do SUS, in verbis:
Art. 3º O planejamento familiar é parte integrante do conjunto de ações de atenção à mulher, ao homem ou ao casal, dentro de uma visão de atendimento global e integral à saúde.
Parágrafo único - As instâncias gestoras do Sistema Único de Saúde, em todos os seus níveis, na prestação das ações previstas no caput, obrigam-se a garantir, em toda a sua rede de serviços, no que respeita a atenção à mulher, ao homem ou ao casal, programa de atenção integral à saúde, em todos os seus ciclos vitais, que inclua, como atividades básicas, entre outras:
I - a assistência à concepção e contracepção.
O artigo 6º, desta mesma lei de planejamento familiar, não restringe o acesso à inseminação artificial, embora não o explicite diretamente como na RN 192/2009 e seguintes. Veja-se:
Art. 6º As ações de planejamento familiar serão exercidas pelas instituições públicas e privadas, filantrópicas ou não, nos termos desta Lei e das normas de funcionamento e mecanismos de fiscalização estabelecidos pelas instâncias gestoras do Sistema Único de Saúde.
Parágrafo único - Compete à direção nacional do Sistema Único de Saúde definir as normas gerais de planejamento familiar.
Entretanto, a favor de nossa tese, as "normas de funcionamento e mecanismo de fiscalização estabelecidas" obrigam o Estado a garantir fiscalização para um direito assegurado, ao incluir o "planejamento familiar" na lei nº 9.656/98, e não a limitar o acesso a métodos plenamente testados para uso em humanos, que possam atender ao previsto no § 7º, do artigo 226, da Carta Magna.
A lei nº 9.656/98 vedou acesso à inseminação artificial aos beneficiários do sistema de saúde suplementar, ainda que tenha a Lei do Planejamento Familiar (Lei 9.263/96) garantido amplamente, a todos os cidadãos brasileiros, o direito à procriação medicamente assistida, dois anos antes da promulgação daquela.
Esta imperfeição da LPF foi, agora, corrigida pela Lei 11.935, de 11 de maio de 2009 - artigo 35-C, inciso III, que prevê cobertura para o planejamento familiar. Não há como comportar outra interpretação, que não a do acesso generalizado a todos os métodos científicos, tanto para mulheres, quanto para homens, desde que livre e amplamente conhecidas suas vantagens e riscos, e por eles formalmente consentidos, o que ficou definitivamente assegurado no Direito Brasileiro, pelo princípio da supremacia do direito à vida.
Em se tratando o direito à procriação de um direito subjetivo, a normalidade se caracteriza pela possibilidade de reproduzir, sendo a infertilidade, portanto, uma alteração anormal da saúde humana, porque retira do corpo uma de suas capacidades inerentes. Utilizar-se o método para cura de outra enfermidade é o mesmo que “despir” a vida de importância jurídica, de sua proteção como direito subjetivo: a vida não é um segundo plano de ação, é o primordial.
Donde se conclui, á luz dos copiosos argumentos, que a infertilidade humana é um problema de saúde, como reconhecido pelo Conselho Federal de Medicina7, não deixando a reprodução assistida, consistente no procedimento médico de assegurar a gravidez, de atender dever do Estado vinculado ao planejamento familiar, cujo regramento constitucional está no art. 226, § 7º, CF/1988, como se vicejou nesta decisão.
Da mesma forma que ao reconhecer o Estado brasileiro, regulamentando pauta constitucional, ser direito de todo cidadão o planejamento familiar (art. 1º, Lei nº 9.263/1996) e, se cidadãos que não disponham de condições financeiras, tem ao seu alcance a cobertura pelo SUS (art. 3º, parágrafo único, Lei nº 9.263/1996), em cujo âmbito instituída a Política Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana Assistida (Portaria nº 426/GM, de 22.03.2005; Portaria nº 388, do Secretário de Atenção à Saúde, de 06.07.2005), é de se concluir que os argumentos aqui expendidos se voltam à cobertura pretendida porque planejar é gerar ou evitar a prole.
O intervencionismo do Estado nas relações negociais autoriza o Magistrado a relativizar o dogma da autonomia da vontade, adequando-o às novas preocupações de ordem social.
Assim, a infertilidade humana corresponde a problema de saúde, como reconhecido pelo Conselho Federal de Medicina, não deixando de ser a reprodução assistida procedimento médico de assegurar a gravidez, vinculado ao planejamento familiar, cujo regramento constitucional está no art. 226, § 7º, CF/1988, regulamentado pelo art. 1º, Lei nº 9.263/1996, com o que assumiu prestações de ordem variadas para permitir sua efetivação, inclusive no campo da saúde, atraindo toda a jurisprudência formada em torno dos arts. 6º, 23, II e 196, CF/1988, o que autoriza a relativização dos efeitos da cláusula contratual que a exclui, para determinar à empresa ré que custeie integralmente dois procedimentos de fertilização in vitro.
Não obstante os argumentos acima esposados, o E. STJ, ao julgar o Tema 1067 sob a sistemática dos recursos repetitivos, fixou a seguinte tese: “Salvo disposição contratual expressa, os planos de saúde não são obrigados a custear o tratamento médico de fertilização in vitro.”
Registra-se também que o mencionado posicionamento do STJ já tinha sido fixado anteriormente pelo Enunciado 02 (DJe n. 2284, de 14/12/18) do Colégio de Magistrados dos Juizados Especiais do Estado da Bahia.
Enunciado 02 dos Magistrados dos Juizados Especiais do Estado da Bahia (DJe n. 2284, de 14/12/18):
“A inseminação artificial e a fertilização “in vitro” não são procedimentos de cobertura obrigatória pelas empresas operadoras de planos de saúde, salvo por expressa iniciativa prevista no contrato de assistência à saúde”.
Conforme tais argumentos expostos, se mantém a sentença que julgou improcedente a pretensão autoral, porém, expressando-se a ressalva desta relatora.
Diante do exposto, CONHEÇO E NEGO PROVIMENTO AO RECURSO PARA MANTER A SENTENÇA EM TODOS OS SEUS TERMOS. Custas e honorários, estes em 20% do valor da causa a cargo da recorrente vencida. Contudo, em virtude do deferimento da assistência judiciária gratuita, tal pagamento fica suspenso nos termos do art. 98, § 3º do CPC.
NICIA OLGA ANDRADE DE SOUZA DANTAS
Juíza Relatora
1AGUIAR. Monica. Direito à filiação e bioética. Rio de Janeiro: 2005, p. 96-97.
2Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,camara-aprova-projeto-que-obriga-planos-de-saude-a-custear-quimioterapia-oral,1068891,0.htm. Acesso em 22 de outubro de 2013.
4ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa-fé no código civil. São Paulo: Saraiva, 2007, 1ed, 2 tiragem, 222 p.
5DANTAS, Nicia Olga Andrade de Souza. Fertilização in vitro. Terapêutica para os casos de infertilidade. Revista Jurídica CONSULEX, nº 265, ano XII, , 31/01/2008: Editora Consulex, Brasília, Distrito Federal, 2008, pagina 58.
6O Conselho Federal de Medicina (CFM) aprovou uma resolução que garante aos casais homossexuais o direito de recorrer à reprodução assistida para ter filhos. A norma anterior previa que qualquer pessoa poderia ser submetida ao procedimento, mas era vaga e deixava margem para diferentes interpretações. A nova resolução publicada na no Diário Oficial da União, explicita, pela primeira vez, o direito dos casais homoafetivos, um marco na luta pelos direitos civis dos homossexuais, embora faça uma ressalva ao estabelecer que será "respeitado o direito da objeção de consciência do médico". Disponível em http://180graus.com/Bafao180/casais-gays-ganham-direito-ao-uso-de-fertilizacao-in-vitro . Acesso em 6 de outubro de 2013.
7 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, RESOLUÇÃO CFM nº 1.957/2010, (Publicada no D.O.U. de 06 de janeiro de 2011, Seção I, p.79). Disponível em http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2010/1957_2010.htm, acesso em 22.10.2013.