EMENTA
RECURSO INOMINADO. DIREITO DO CONSUMIDOR. AQUISIÇÃO DE PRODUTO (PÃO DE FORMA) IMPRÓPRIO PARA CONSUMO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA NÃO AMPARADA POR CAUSA EXCLUDENTE. PRODUTO IMPRÓPRIO PARA CONSUMO, EM CONFRONTO COM A PROTEÇÃO DA VIDA, DA SAÚDE E A SEGURANÇA CONTRA OS RISCOS PROVOCADOS POR PRÁTICAS NO FORNECIMENTO DE PRODUTOS E SERVIÇOS CONSIDERADOS PERIGOSOS OU NOCIVOS. ART. 6º. DO CDC. NÃO INGESTÃO. INDIFERENÇA. O SIMPLES FATO DE HAVER A CONTAMINAÇÃO NO PRODUTO ADQUIRIDO PELO CONSUMIDOR JÁ REPRESENTA A POTENCIALIDADE DE PRODUÇÃO DE RISCO CONCRETO À SAÚDE E À SEGURANÇA INDEPENDENTEMENTE DA INGESTÃO DO ALIMENTO. PRECEDENTES DO STJ. RESP 1801593/RS. DANOS MORAIS EVIDENCIADOS. SENTENÇA QUE JULGOU PROCEDENTES OS PEDIDOS AUTORAIS, PARA CONDENAR A ACIONADA A INDENIZAR A PARTE AUTORA NO VALOR DE R$ 2.000,00 (DOIS MIL REAIS), A TÍTULO DE DANOS MORAIS, A SER CORRIGIDO MONETARIAMENTE PELOS ÍNDICES OFICIAIS A PARTIR DO ARBITRAMENTO E ACRESCIDO DE JUROS MORATÓRIOS DE 1% (UM POR CENTO) AO MÊS, NÃO CAPITALIZADOS, A CONTAR DA CITAÇÃO. MANUTENÇÃO DO JULGADO. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. JULGAMENTO REALIZADO SOB O RITO ESTABELECIDO NO ARTIGO 15, INCISOS XI E XII DA RES. 02 DE FEVEREIRO DE 2021 DOS JUIZADOS ESPECIAIS E DO ARTIGO 4º, DO ATO CONJUNTO Nº 08 DE 26 DE ABRIL DE 2019 DO TJBA. PRECEDENTES: 0176725-59.2019.8.05.0001, 0001721-84.2017.8.05.0063, 0169242-12.2018.8.05.0001 E 0162243-72.2020.8.05.0001
Dispensado o relatório nos termos do artigo 46 da Lei n.º 9.099/95[1].
Circunscrevendo a lide e a discussão recursal para efeito de registro, saliento que a Recorrente WICKBOLD NOSSO PAO INDUSTRIAS ALIMENTICIAS LTDA pretende a reforma da sentença lançada nos autos que JULGOU PROCEDENTES OS PEDIDOS AUTORAIS, para CONDENAR a acionada a indenizar a parte autora no valor de R$ 2.000,00 (dois mil reais), a título de danos morais, a ser corrigido monetariamente pelos índices oficiais a partir do arbitramento e acrescido de juros moratórios de 1% (um por cento) ao mês, não capitalizados, a contar da citação.
Presentes as condições de admissibilidade do recurso, conheço-o, apresentando voto com a fundamentação aqui expressa, consoante o rito estabelecido no artigo 15, incisos XI e XII da Res. 02 de fevereiro de 2021 dos Juizados Especiais e do artigo 4º, do Ato Conjunto nº 08 de 26 de abril de 2019 do TJBA, que dispõem sobre o julgamento realizado monocraticamente de processos em ambiente virtual pelas Turmas Recursais do Sistema dos Juizados Especiais que utilizam o Sistema PROJUDI.
DECISÃO MONOCRÁTICA
NO MÉRITO, trata-se de ação indenizatória por danos morais e materiais, na qual a parte autora Alega a autora que adquiriu produto junto a ré e que após consumi-lo constatou que o mesmo estava improprio para consumo. Requer reparação por danos materiais e indenização por danos morais.
A ré sustenta inexistência de provas capazes de ratificar as alegações apontadas na inicial. Sustenta inexistência do dever de reparar seja por danos materiais e morais. Requer a improcedência da ação.
Pois bem.
Primeiramente, insta consignar que o presente caso é disciplinado pelo Código de Defesa do Consumidor, por se tratar de relação de consumo, de modo que a responsabilidade da recorrente é objetiva, somente afastável se demonstrar a ocorrência dos casos previstos no artigo 12, § 3º, do CDC[2].
No caso dos autos, não há provas nesse sentido, apenas restando demonstrado que o produto oferecido pela ré não oferecia a segurança que dele se esperava, por se tratar de um alimento para consumo imediato, o qual estava contaminado por um corpo estranho em seu interior (artigo 12, § 1º, do CDC).
O Código de Defesa do Consumidor, em seu § 6º, especifica, ainda, que:
§ 6º São impróprios ao uso e consumo: I - os produtos cujos prazos de validade esteja vencidos; II - os produtos deteriorados, alterados, adulterados, avariados, falsificados, corrompidos, fraudados, nocivos à vida ou à saúde, perigosos ou, ainda, aqueles em desacordo com as normas regulamentares de fabricação, distribuição ou apresentação; III - os produtos que, por qualquer motivo, se revelem inadequados ao fim a que se destinam.
Por conseguinte, à caracterização da obrigação indenizatória, basta a existência de dano e de nexo de causalidade entre este e a conduta da agente, a considerar que a responsabilidade, na hipótese, é objetiva (art. 12, do CDC).
Pontua-se, ademais, consoante se extrai do art. 6º do diploma protetivo, que são direitos básicos do consumidor "a proteção da vida, da saúde e a segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos".
Recentemente, diga-se de passagem, a jurisprudência do STJ (AgInt no AREsp 1.018.168/SE, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 04/04/2017, DJe 18/04/2017) mantinha posição no sentido de que o fato de um consumidor encontrar um corpo estranho em alimento não configuraria, por si só, dano moral, pois imprescindível era demonstrar que tal alimento contaminado tivesse sido ingerido. Ou seja, o dano moral não era presumido em situação assim (in re ipsa, decorrente dos próprios fatos).
Em um dos últimos precedentes que se tem sobre o tema (REsp 1.644.405/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 09/11/2017, DJe 17/11/2017), o STJ, porém, relativizou isso, dizendo que, o fato de se ter levado um alimento contaminado à boca já seria suficiente para a configuração do dano moral, pelo iminente risco concreto à saúde e à integridade física e psíquica do consumidor. Copio, para melhor esclarecimento, parte do voto da relatora desse julgado, que mostra a ratio decidendi do julgamento:
(...)É evidente a exposição a risco nessas circunstâncias, o que necessariamente deve afastar a necessidade de ingestão para o reconhecimento da responsabilidade do fornecedor. Exigir que, para a necessidade de reparação, houvesse a necessidade que a criança deglutisse a aliança escondida no biscoito recheado, parece não haver respaldo na legislação consumerista.
Ademais, cumpre salientar que o Código de Defesa do Consumidor preza pela saúde e segurança dos consumidores, conforme art. 8º:
8º Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito.
Assim, ainda que não tenha havido o consumo do alimento contaminado pelo recorrente, constata-se o risco à sua saúde e à sua segurança ante a presença de um corpo estranho e abjeto no alimento.
Por outro lado, um produto ou serviço apresentará defeito de segurança quando, além de não corresponder à expectativa do consumidor, sua utilização ou fruição for capaz de criar riscos à sua incolumidade ou de terceiros. A insegurança, portanto, é um vício de qualidade que se agrega ao produto ou serviço como um novo elemento de desvalia e que transcende a simples frustração de expectativas
Ressalta-se, mais uma vez, que a jurisprudência acerca do assunto não se encontra uníssona, uma vez que há dualidade de entendimentos quanto à ocorrência de dano moral diante da ingestão ou não do alimento contaminado pelo consumidor. Por um lado destaca-se que para alguns a ausência de ingestão não produz prejuízo apto a ensejar dano moral, visto não produzir dano concreto, por outro viés, sobressai a proteção à saúde e segurança do consumidor, sendo suficiente a exposição deste a corpo estranho.
Considero, ao contrário, que o simples fato de haver a contaminação no produto adquirido pelo consumidor, já representa a potencialidade de produção de risco concreto à saúde e à segurança independentemente da ingestão do alimento, corrente a qual me filio, levando em consideração as peculiaridades do caso concreto.
A recorrida visa, também, afastar sua condenação, alegando inexistir danos morais na situação presente, buscando levar o caso ao patamar do mero desconforto e aborrecimento, inerentes ao cotidiano.
Sem razão mais uma vez.
Ora, é evidente que aquele que adquire um alimento, espera que esse atenda às expectativas mais elementares, como não estar esse contaminado ou fora de seu prazo de validade.
Não se está a tratar de alimento fora dos padrões exibidos comercialmente ou que não esteja ao agrado do paladar do consumidor. Trata-se, meramente, da garantia de que a saúde desse não seja vulnerabilizada, o que deveria ser preocupação primordial do fabricante/fornecedor.
É inadmissível aceitar que um evento como o noticiado nos autos esteja no patamar nos meros dissabores cotidianos, algo que se espera acontecer, vez ou outra. Crer nisso, além de relativizar o respeito ao consumidor, finalmente conquistado através de um código recente, ainda é escarnecer com o bom senso.
Desta forma, vislumbro que o risco inesperado vivenciado pelo consumidor ocasiona dano moral sujeito à reparação, tendo em vista a potencialidade lesiva advinda do risco de consumação a culminar no desrespeito à dignidade da pessoa humana. Assim, afastável pela impropriedade, todos os argumentos nesse sentido, trazidos pela recorrente adesiva, pelo que a indenização moral deve ser deferida[3].
Sabe-se que ¿o dano moral não é propriamente a dor, a angústia, o desgosto, a aflição espiritual, a humilhação, o complexo que sofre a vítima do evento danoso, pois esses estados de espírito constituem o conteúdo, ou melhor, a consequência do dano.(...).¿(Carlos Roberto Gonçalves, Comentários ao Código Civil - Parte Especial do Direito das Obrigações", vol. 11, 2003, Saraiva, pág. 926/927).
Verifico na presente insurgência situação que enseja indenização por danos morais ante a comprovação de aborrecimentos para além da normalidade pela presença de objeto estranho no biscoito a ser consumido pelo recorrente. Assim, o fato ocorrido possui intensidade lesiva suficiente para atingir moralmente o apelante e promover desequilíbrio emocional e psíquico, sendo plausível a pretensão de reparação por danos morais.
Desta forma, configurada a hipótese de dano moral indenizável, é necessário verificar que o quantum obedeça ao Princípio da Proporcionalidade. Nesse entender, o STJ tem consagrado a doutrina da dupla função na indenização do dano moral: compensatória e penalizante.
Visto que a fixação do montante indenizatório depende também da disponibilidade financeira da parte que causou o dano, impõe-se destacar que a recorrida é empresa do gênero alimentício com grande capacidade econômica, no que entendo que o valor de R$ 2.000,00 (dois mil reais) a título de indenização por danos morais encontra-se dentro dos parâmetros de razoabilidade e proporcionalidade.
No que tange ao dano material, por óbvio deve ser ressarcido à autora o custo do alimento contaminado.
Ante o exposto, voto no sentido de CONHECER E NEGAR PROVIMENTO ao recurso interposto pelo acionado, para manter a sentença impugnada em todos os seus termos. Custas ou honorários advocatícios pelo recorrente; estes arbitrados em 20% sobre o valor da condenação.
Processo julgado com base no artigo nº 4º, do Ato Conjunto nº 08 de 26 de Abril de 2019 do TJBA, que dispõe sobre o julgamento de processos em ambiente virtual pelas Turmas Recursais do Sistema dos Juizados Especiais que utilizam o Sistema PROJUDI e/ou a decisão do acórdão faz parte de entendimento já consolidado por esta Colenda Turma Recursal e/ou o acórdão é favorável a quem requereu pedido de sustentação oral dentro do prazo legal, tendo este já findado.
Salvador/BA, 25 de maio de 2022.
ELIENE SIMONE SILVA OLIVEIRA
Juíza Relatora
[1] Art. 46. O julgamento em segunda instância constará apenas da ata, com a indicação suficiente do processo, fundamentação sucinta e parte dispositiva. Se a sentença for confirmada pelos próprios fundamentos, a súmula do julgamento servirá de acórdão.
[2] § 3° O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar: I - que não colocou o produto no mercado; II - que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste; III - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
[3] RECURSO ESPECIAL. DIREITO DO CONSUMIDOR. AÇÃO DE COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. AQUISIÇÃO DE CERVEJA COM CORPO ESTRANHO. NÃO INGESTÃO. EXPOSIÇÃO DO CONSUMIDOR A RISCO CONCRETO DE LESÃO À SUA SAÚDE E SEGURANÇA. FATO DO PRODUTO. EXISTÊNCIA DE DANO MORAL. VIOLAÇÃO DO DEVER DE NÃO ACARRETAR RISCOS AO CONSUMIDOR. 1. Ação ajuizada em 19/07/2013. Recurso especial interposto em 28/05/2018 e concluso ao Gabinete em 08/04/2019. 2. O propósito recursal consiste em determinar se, para ocorrer danos morais em função do encontro de corpo estranho em alimento industrialização, é necessária sua ingestão ou se o simples fato de sua comercialização com corpo estranho ao produto vendido é suficiente para a configuração do dano moral. 3. A aquisição de produto de gênero alimentício contendo em seu interior corpo estranho, expondo o consumidor à risco concreto de lesão à sua saúde e segurança, ainda que não ocorra a ingestão de seu conteúdo, dá direito à compensação por dano moral, dada a ofensa ao direito fundamental à alimentação adequada, corolário do princípio da dignidade da pessoa humana. 4. Hipótese em que se caracteriza defeito do produto (art. 12, CDC), o qual expõe o consumidor à risco concreto de dano à sua saúde e segurança, em clara infringência ao dever legal dirigido ao fornecedor, previsto no art. 8º do CDC. 5. Na hipótese dos autos, a simples comercialização de produto contendo corpo estranho possui as mesmas consequências negativas à saúde e à integridade física do consumidor que sua ingestão propriamente dita. 6. Recurso especial provido. (REsp 1801593/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/08/2019, DJe 15/08/2019)