PROCESSO Nº 0000240-47.2023.8.05.0105
RECORRENTES: COMPANHIA HIDRO ELETRICA DO SAO FRANCISCO e LIRIA SANTOS DA CRUZ
RECORRIDOS: COMPANHIA HIDRO ELETRICA DO SAO FRANCISCO e LIRIA SANTOS DA CRUZ
RELATORA: Juíza Ivana Carvalho Silva Fernandes
EMENTA
RECURSOS INOMINADOS SIMULTÂNEOS. CONDIÇÕES DE ADMISSIBILIDADE PREENCHIDAS. DIREITO CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. SENTENÇA REFORMADA. RECURSO DA PARTE AUTORA CONHECIDO E PROVIDO EM PARTE. RECURSO DA PARTE RÉ CONHECIDO E IMPROVIDO.
Realizado julgamento do Recurso do processo acima epigrafado, A TERCEIRA TURMA RECURSAL decidiu, à unanimidade de votos, CONHECER e DAR PROVIMENTO EM PARTE ao recurso da parte Autora, para reformar a sentença, bem como CONHECER e NEGAR PROVIMENTO ao recurso da parte Ré.
Salvador (BA), data da assinatura eletrônica.
IVANA CARVALHO SILVA FERNANDES
Juíza Relatora
Dispensado o relatório nos termos claros do artigo 46 da Lei n. º 9.099/95.
Presentes os pressupostos extrínsecos e intrínsecos de sua admissibilidade, conheço do recurso.
A preliminar de incompetência do juízo (sentença contraditória e perícia) não pode ser acatada, tendo em vista que a demanda é de regular processamento nos Juizados Especiais. Além disso, o manancial probatório, acostado aos autos, é suficiente e satisfatório para a formação do convencimento motivado do magistrado. As questões de fato da presente demanda não exigem prova complexa.
Quanto a sentença ser contraditória tal alegação serve para ser imputada em sede de Recurso Inominado, não sendo o meio idôneo, mas sim os Embargos de Declaração. Logo, não merece qualquer exame.
As preliminares acerca da omissão e equívoco acerca da responsabilidade do município e falta de análise do parecer acostado também devem ser rechaçadas, tendo em vista que padece do mesmo defeito da preliminar anterior, qual seja, meio recursal incorreto. Mais uma vez é necessário deixar claro que compete aos Embargos de Declaração sanar qualquer omissão da sentença, porém a ré não fez uso no momento adequado, não podendo alegar tal matéria em sede de Recurso Inominado.
Além disso, não é aplicável ao sistema dos Juizados Especiais o disposto no art. 489 do CPC.
Nesse sentido, art. 38, caput, da Lei 9099/95, a qual aduz: A sentença mencionará os elementos de convicção do Juiz, com breve resumo dos fatos relevantes ocorridos em audiência, dispensado o relatório.
Da mesma forma, Enunciado 162 do Fonaje, cujo conteúdo transcrevo: Não se aplica ao Sistema dos Juizados Especiais a regra do art. 489 do CPC/2015 diante da expressa previsão contida no art. 38, caput, da Lei 9.099/95.
A parte Autora alega, em síntese, que, no dia 26/12/2022, teve sua residência invadida pelas águas do Rio de Contas pela abertura abrupta da Barragem da Pedra administrada pela acionada. Informa que perdeu seus pertences pessoais, pois o volume de água foi imenso somente vindo a ceder depois de 24hs de cheia. Assim, pugna por indenização por danos morais no valor de R$ 50.000,00 (-).
O Juízo a quo julgou parcialmente procedentes os pedidos, conforme transcrevo a seguir:“Ante o exposto, JULGO PROCEDENTES, EM PARTE, OS PEDIDOS FORMULADOS PELO AUTOR, para CONDENAR a empresa demandada a compensar à parte autora os danos morais suportados, no importe de R$3.000,00 (três mil reais), atualizados com juros de 1% ao mês, a partir da data do evento danoso, a saber, 26/12/2022, e correção monetária, a partir da data da publicação desta sentença”.
Passo à análise do mérito.
Inicialmente, frise-se que em sede recursal (evento 67), verifica-se que a acionada acosta documentos novos, que não pode ser admitido, sob pena de violação ao art. 33 da lei 9.099/95, e aos princípios do contraditório e ampla defesa, sendo manifesta a preclusão.
Compulsando-se os autos é possível verificar que a acionada deu causa ao evento (inundação) ocorrido na residência da autora, no dia 26/12/2022.
Os documentos apresentados no evento 01 comprovam que a ré abriu as comportas da barragem causando o evento danoso, Observe-se que já existia chuva volumosa na região, conforme documento intitulado “manejo diário da barragem” (evento 01), sendo que a taxa de defluência no dia 24/12/2022 estava em 699 m³/s, passando no dia 26/12/2022 para 2.132,16 m³/s.
A autora também apresentou reportagem (evento 01), na qual responsável pelo Inema informa da possibilidade de irregularidade na conduta que permitiu uma taxa de defluência maior que o normal, o que ensejaria possíveis transtornos no município da autora.
Tais provas afastam o quanto previsto no parecer unilateral acostado pela ré no evento nº 12, já que demonstram a irregularidade promovida pela ré no tratamento da situação ocorrida naquele momento na região, a qual acabou por ocasionar a inundação comprovada no evento 01 através dos vídeos e fotografias apresentadas.
Observe-se, ainda, que conforme ata notarial (evento 01), a acionante teve sua residência invadida pelo Rio de Contas na data de 26/12/2022, o que corrobora com as imagens e vídeos apresentados pela requerente.
Ora, restou evidente que o desastre aconteceu porque a acionada demorou a tomar atitude quanto a necessidade do aumento do volume de defluência de água. Dessa forma, a fim de baixar seu estoque de águas foi necessário vertê-las em volume gigantesco, radical e repentino, causando inundação diluviana no extenso território de sua vazante, entre os quais se situam os municípios de Itagibá e Ipiaú.
Houve clara afronta ao art. 1.292 do Código Civil: O proprietário tem direito de construir barragens, açudes, ou outras obras para represamento de água em seu prédio; se as águas represadas invadirem prédio alheio, será o seu proprietário indenizado pelo dano sofrido, deduzido o valor do benefício obtido.
Além disso, apesar da demandada afirmar que não teve culpa pelo evento, atribuindo tal fato a força maior, o disposto na Lei 12.334/2010, que dispõe sobre a Política Nacional de Segurança de Barragens destinadas à acumulação de água para quaisquer usos imputa responsabilidade independentemente de culpa, a saber: Art. 4o São fundamentos da Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB) (...) III - a responsabilidade legal do empreendedor pela segurança da barragem, pelos danos decorrentes de seu rompimento, vazamento ou mau funcionamento e, independentemente da existência de culpa, pela reparação desses danos.
É sabido que, apesar da demandada ser pessoa jurídica de direito privado, a mesma presta um serviço público, razão pela qual está vinculada ao quanto previsto no art. 37, § 6º, da CFRB, cujo conteúdo atribui responsabilidade objetiva a tais entes.
Para a configuração do dever de indenizar é necessário o preenchimento dos seguintes requisitos: a) ocorrência do dano, qual seja, o alagamento da residência da parte autora; b) ação ou omissão administrativa, portanto, a demora em aumentar o volume de defluência das águas, mesmo com as fortes chuvas que já assolavam a região; c) existência de nexo causal entre o dano e a ação ou omissão administrativa. Com a liberação abrupta de grande volume de água, acabou por alagar a residência da parte autora; e d) ausência de causa excludente da responsabilidade estatal. Não se trata, como quis alegar a ré, de força maior. As chuvas já estavam ocorrendo e estavam previstas pelo INMET. Houve, de fato, desídia da ré quanto a melhor decisão para se evitar o desastre ocorrido.
Assim, basta a configuração da ação ou omissão, dano e o nexo causal, o que foi evidenciado no presente caso. O dano a inundação da casa da requerente afetando seus pertences pessoais e sua dignidade, a ação a abertura abrupta da defluência mais que triplicando comparado a dois dias antes, mesmo sabendo da existência de período de fortes chuvas e o nexo que é o elo de ligação entre a ação e o dano.
Desse modo, não pode alegar a demandada força maior, porque já sabia das chuvas ocorrentes na região e o seu agravamento, o que ocasionou os problemas para a autora e outros moradores da região.
Quanto a fixação do dano moral, não existe um critério matemático ou padronizado para estabelecer o montante pecuniário devido pela parte violadora à vítima, a título de danos morais.
Assim, à míngua de parâmetros legais, matemáticos ou exatos, utilizo o prudente arbítrio, a proporcionalidade e a razoabilidade para valorar o dano, sem esquecer o potencial econômico do agente, as condições pessoais da vítima e, por fim, a natureza do direito violado.
Neste sentido: “Quando se chegar à conclusão da necessidade e adequação da medida coactiva do poder público para alcançar determinado fim, mesmo neste são, com o objetivo de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim. Trata-se, pois, de uma questão de medida ou desmedida para se alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim.” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2000).
A ideia de proporcionalidade e razoabilidade na fixação do valor do dano moral tem apoio em densa doutrina formulada especialmente no campo do direito público. A reparabilidade do dano moral constitui-se um direito fundamental, essência do nosso modelo constitucional e resguardado como cláusula pétrea.
Acerca do exposto: “A razoabilidade estrutura a aplicação de outras normas, princípios e regras, notadamente das regras. A razoabilidade é usada com vários sentidos. Fala-se em razoabilidade de uma alegação, razoabilidade de uma interpretação, razoabilidade de uma restrição, razoabilidade do fim legal, razoabilidade da função legislativa. Enfim, a razoabilidade é utilizada em vários contextos e com várias finalidades. Embora as decisões dos Tribunais Superiores não possuam uniformidade terminológica, nem utilizem critérios expressos e claros de fundamentação dos postulados de proporcionalidade e de razoabilidade, ainda assim é possível – até mesmo porque isso se inclui nas finalidades da Ciência do Direito – reconstituir analiticamente as decisões, conferindo-lhes a almejada clareza. Por isso, não se pode afirmar que a falta de utilização expressa de critérios no exame da proporcionalidade e da razoabilidade não permita ao teórico do Direito saber, mediante a reconstrução analítica das decisões, quais são os critérios implicitamente utilizados pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. A razoabilidade como dever de harmonização do Direito com suas condições externas (dever de congruência) exige a relação das normas com suas condições externas de aplicação, quer demandando um suporte empírico existente para a adoção de uma medida, quer exigindo uma relação congruente entre o critério de diferenciação escolhido e a medida adotada. A proporcionalidade constitui-se em um postulado normativo aplicativo, decorrente do caráter principal das normas e da função distributiva do Direito, cuja aplicação, porém, depende do imbricamento entre bens jurídicos e da existência de uma relação meio/fim intersubjetivamente controlável. Se não houver uma relação meio/fim devidamente estruturada, então – nas palavras de Hartmut Maurer – cai o exame de proporcionalidade, pela falta de pontos de referência, no vazio.” (ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 8ª ed. São Paulo: Malheiros 2008.”
O STJ atende a fixação dos danos morais pelo método bifásico, onde no primeiro momento, levam-se em conta as jurisprudências sobre casos idênticos de lesões ao mesmo bem jurídico e em um segundo momento leva em consideração às particularidades próprias que os casos apresentam variáveis importantes, gravidade do fato em si, a culpabilidade do autor do dano, a intensidade do sofrimento das vítimas diretamente ou por ricochete [dano moral reflexo ou indireto], o número de autores e a situação socioeconômica do responsável pelo dano. Para eles, esses elementos devem ser considerados na definição do valor da indenização.
Analisando os critérios objetivos e subjetivos, quais sejam, a gravidade do dano que considerando a condição social e econômica das partes, constato que uma melhor compensação econômica do dano sofrido se impõe a recorrente, de forma que não haja um valor inexpressivo a Recorrida e utilizando também o critério bifásico, anteriormente citado e pelo cotejo dos fatos e das provas, é forçoso concluir-se que o quantum indenizatório fixado na sentença não atendeu aos critérios acima mencionados, de sorte que com melhor análise, a pretensão recursal deve ser majorada para R$ 8.000,00 (-).
Com essas considerações, e por tudo mais que dos autos consta, voto no sentido de CONHECER e DAR PROVIMENTO EM PARTE ao recurso da parte Autora, para aumentar o valor do dano moral para o importe de R$ 8.000,00 (oito mil reais), mantendo os demais termos da sentença, bem como CONHECER e NEGAR PROVIMENTO ao recurso da parte Ré.
Condeno a Recorrente/Ré ao pagamento das custas e honorários advocatícios em 20% do valor da condenação.
Sem condenação em custas e honorários, nos termos do art. 55 da Lei n. 9.099/95, quanto ao recurso da parte Autora.
Salvador, data certificada pelo sistema.
Ivana Carvalho Silva Fernandes
Juíza de Direito Relatora