PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DA BAHIA Primeira Câmara Criminal 2ª Turma Apelação n.º 0312143-37.2017.8.05.0001 – Comarca de Salvador/BA Apelante: Ministério Público do Estado da Bahia Promotor de Justiça: Dr. Luís Cláudio Cunha Nogueira Apelada: Ingrid Taís Santos de Andrade Advogados: Dr. Vivaldo do Amaral Adaes (OAB/BA 13.540), Dr. Mateus Cardoso Coutinho (OAB/BA 24.952), Dra. Dominique Viana Silva (OAB/BA 36.217), Dra. Fernanda Freitas Guedes (OAB/BA 59.273) e Dra. Bianca Beatriz Barbosa da Cruz (OAB/BA 68.312) Origem: Vara de Auditoria Militar da Comarca de Salvador/BA Procurador de Justiça: Dr. Antônio Carlos Oliveira Carvalho Relatora: Desa. Rita de Cássia Machado Magalhães ACÓRDÃO APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME DE DESCUMPPRIMENTO DE MISSÃO (ART. 196 DO CÓDIGO PENAL MILITAR). PLEITO MINISTERIAL DE REFORMA DA SENTENÇA. JUIZ AUDITOR QUE, MONOCRATICAMENTE, DECLAROU A INCONSTITUCIONALIDADE DO TIPO PENAL, ABSOLVENDO SUMARIAMENTE A ACUSADA. PROVIMENTO DO RECURSO PARA ANULAR A DECISÃO JUDICIAL. ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA QUE NÃO SE APLICA À JUSTIÇA MILITAR. PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE. PRECEDENTE DO SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR. USURPUÇÃO DA COMPETÊNCIA CONSTITUCIONAL DO CONSELHO ESPECIAL DE JUSTIÇA, ÓRGÃO COLEGIADO A QUEM COMPETE O JULGAMENTO DOS OFICIAIS DA POLÍCIA MILITAR. APELO CONHECIDO E PROVIDO, para reconhecer a nulidade da sentença proferida pelo juiz auditor de origem, determinando o prosseguindo do feito, com a realização da sessão de julgamento pelo Conselho Especial de Justiça. I – Cuida-se de Recurso de Apelação interposto pelo Ministério Público do Estado da Bahia, insurgindo-se contra a sentença proferida pelo Juiz Auditor da Vara de Auditoria Militar, que reconheceu, em controle difuso, a inconstitucionalidade do art. 196 do Código Penal Militar, absolvendo sumariamente a acusada Ingrid Taís Santos de Andrade. II – Narra a peça acusatória, in verbis (ids. 38112082-38112083): “[…] que, em 13 de outubro de 2011, o comando do BPChq expediu portaria em IPM nº Correg, Setorial – 015/10/2011, designando a TEN PM Ingrid Taís Santos de Andrade, para apurar suposta prática de crime praticado por policiais militares em 26 de agosto de 2011. Porém, a oficiala, desidiosamente, descumpriu os prazos legais. Consta do conjunto probatório, que a encarregada comunicou o início dos trabalhos do citado IPM no dia 03/10/2012, e somente em 21/03/13 solicitou ao DPT, cópia do Laudo cadavérico do vitimado, peça imprescindível ao deslinde das investigações, o que foi atendido no mês seguinte, sendo então confeccionado relatório conclusivo em 15/04/13. Não obstante o lapso temporal, que ficou na posse dos autos, diligências indispensáveis deixaram de ser cumpridas, o que motivou a baixa dos autos pela Corregedoria Geral em 17/09/2013, sendo recebida pela encarregada no dia 02/10/13. No entanto, as investigações foram reiniciadas no dia 17/11/14, após solicitação da oficiala, em 06/11/2014, de afastamento das atividades por 05 (cinco) dias, para conclusão da apuração (fl. 53). Porém, embora tenha sido concedido dispensa das atividades ordinárias, a denunciada somente concluiu os trabalhos em 15/04/16, quando elaborou relatório final e encaminhou os autos à Corregedoria geral. Em vista do exposto, cumpridas as formalidades legais pertinentes, tem-se configurado o crime descrito no art. 196, § 1º do Código Penal Militar […]”. III – Em suas razões de inconformismo, em apertada síntese, pugna o Apelante pela reforma da sentença e retomada do curso regular da ação penal, tendo em vista que a absolvição sumária, pelo princípio da especialidade, não é aplicável no âmbito da Justiça Militar, por ausência de previsão legal, sustentando, ainda, a constitucionalidade do art. 196 do CPM. IV – Merece acolhimento a pretensão ministerial para que seja reconhecida a nulidade da sentença proferida pelo Juiz a quo, por violação às normas e regras, legais e constitucionais, pertinentes à competência e ao devido processo legal no âmbito da Justiça Militar. V – Analisando os autos, verifica-se que o MM. Juiz de Direito a quo, atuando como Juiz Auditor da Vara de Auditoria Militar da Comarca de Salvador/BA, após o término da instrução processual e apresentação das alegações finais, por ambas as partes, prolatou, monocraticamente, sentença em que reconheceu a inconstitucionalidade do art. 196 do Código Penal Militar, sob o argumento de que o dispositivo legal fere o princípio da taxatividade, sendo demasiadamente aberto acerca da elementar “missão”. Em virtude disso, o magistrado de origem absolveu sumariamente a ré. VI – Inicialmente, no que concerne à possibilidade de aplicação da absolvição sumária, introduzida no Código de Processo Penal pela Lei nº 11.719/2008, no âmbito da Justiça Militar, já se manifestou contrariamente o Superior Tribunal Militar, em decisão unânime, nos seguintes termos: “[…] 1. As alterações promovidas pela Lei nº 11.719/08 dizem respeito apenas ao Código de Processo Penal e não ao Código de Processo Penal Militar. Precedentes do STM. Inteligência da Súmula nº 15 do STM. 2. A competência para decidir qualquer questão de fato ou de direito suscitada durante a instrução criminal é do Conselho de Justiça, conforme o art. 28, V, da Lei de Organização Judiciária Militar. 3. Preliminar acolhida para declarar a nulidade do processo, a partir da Decisão que absolveu sumariamente o réu, com o retorno dos autos ao Juízo de origem para prosseguimento do Feito […]” (STM, AP nº 00000365920137010101/RJ, Relator: Lúcio Mário de Barros Góes, Data de Julgamento: 21/08/2014, Data da Publicação no DJE: 05/09/2014). VII – O procedimento do Código de Processo Penal Militar, aplicável aos crimes apenados com reclusão e detenção, encontra-se previsto no seu art. 384 ao art. 450, podendo ser resumido da seguinte forma: 1 – Oferecimento da denúncia; 2 – Recebimento ou rejeição da denúncia; 3 – Citação; 4 – Convocação do Conselho Permanente de Justiça ou sorteio e posse do Conselho Especial de Justiça; 5 – Instrução criminal com a oitiva da vítima, inquirição das testemunhas e interrogatório do réu; 6 – Requerimento de diligências; 7 – Alegações Finais; 8 – Sessão de julgamento; 9 – Leitura da sentença em sessão pública (Rosseto, Enio Luiz. Curso de processo penal militar [livro eletrônico], 1ª ed. - São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021). VIII – Verifica-se, portanto, que não há previsão legal de absolvição sumária no Código de Processo Penal Militar, devendo o feito, após a conclusão da instrução processual, ser encaminhado para alegações finais e, em seguida, para sessão de julgamento, havendo jurisprudência consolidada do Superior Tribunal Militar, do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que, pelo princípio da especialidade, prevalecem as regras da codificação militar. Ademais, segundo o STF: “[...] não se pode mesclar o regime penal comum e o castrense, de modo a selecionar o que cada um tem de mais favorável ao acusado, devendo ser reverenciada a especialidade da legislação processual penal militar e da justiça castrense, sem a submissão à legislação processual penal comum do crime militar devidamente caracterizado [...]” (STF, HC 122673/PA, Relator: Min. CÁRMEN LÚCIA, Segunda Turma, Publicação: DJe 01-08-2014) (no mesmo sentido: STJ, HC 165042/RS, Relator: Ministro NEFI CORDEIRO, T6 - SEXTA TURMA, Publicação: DJe 25/02/2016; STM, HC 00001108420157000000/MS, Relator: Fernando Sérgio Galvão, Publicação DJe: 10/08/2015). IX – Incabível, assim, a absolvição sumária procedida pelo magistrado de origem, por violação ao devido processo legal e ao princípio da especialidade. Seguindo essa mesma linha intelectiva, manifestou-se a Douta Procuradoria de Justiça (id. 39938945): “[…] A inaplicabilidade do Código de Processo Penal no âmbito da Justiça Militar justifica-se pelo fato de ser aplicável, na Justiça Castrense, o Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001/69) e o Código de Processo Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.002/69). E, nesse ponto, é importante destacar que o próprio estatuto processual penal militar prevê a possibilidade de os casos omissos serem supridos pela legislação de processo penal comum, quando aplicável ao caso concreto e somente em não havendo prejuízo da índole do processo penal militar (CPPM, art. 3º, alínea “a”). Acerca da impossibilidade da absolvição sumária, em se tratando de crime militar, já se posicional o Superior Tribunal Militar, de forma unânime e reiteradas vezes […]”. X – Outrossim, a competência da Justiça Militar está prevista entre os arts. 122 e 125 da Constituição Federal de 1988, cabendo à Justiça Militar estadual o processamento e julgamento dos militares dos Estados, pela prática dos crimes militares definidos em lei. A partir da Emenda Constitucional nº 45/2019, passaram a existir dois órgãos de jurisdição na Justiça Militar de primeiro grau: o juiz de direito do juízo militar, a quem compete o julgamento dos delitos militares contra civis e as ações contra atos disciplinares militares; e o Conselho de Justiça, sob a presidência do juiz de direito, a quem compete os demais crimes militares (art. 125, §§ 4º e 5º, CF/1988). XI – Acerca dos Conselhos de Justiça, esclarece Enio Luiz Rosseto serem órgãos de “[...] composição mista e de maioria militar, presididos pelo juiz de direito e integrados por quatro oficiais militares. Se o acusado for oficial, são sorteados para o Conselho Especial de Justiça quatro oficiais militares de posto e patente superiores ao oficial acusado ou, no caso de igualdade de posto e patente, mais antigo. Ao menos um dos juízes militares deve ser oficial superior (major, tenente-coronel ou coronel). [...] O Conselho Permanente de Justiça julga praças. Entre os oficiais que o compõe um deles deve ser superior e os demais de posto de tenente ou capitão [...]”. (Rosseto, Enio Luiz. Curso de processo penal militar [livro eletrônico], 1ª ed. - São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021) XII – Na hierarquia da Polícia Militar são oficiais superiores o coronel, o tenente-coronel e o major; oficial intermediário o capitão; e oficiais subalternos o 1ª e o 2º tenentes (Cartilha da Justiça Militar, TJ/BA, 2019), razão pela qual, no caso em tela, foi formado um Conselho Especial de Justiça para processamento e julgamento da acusada, tenente da Polícia Militar (id. 38112941). Trata-se de competência de órgão colegiado e, portanto, subjetivamente complexa ou plúrima, não podendo o juiz singular, em decisão monocrática, reconhecer a inconstitucionalidade da norma que tipifica o crime, absolvendo o réu. XIII – De fato, nos termos do § 2º do art. 438 do CPPM, cabe ao juiz togado redigir a sentença, ainda que discorde dos seus fundamentos ou da sua conclusão, podendo, entretanto, justificar o seu voto, se vencido, no todo ou em parte, após a assinatura. A redação do dispositivo esclarece que o juiz auditor é apenas um dentre os cinco julgadores, devendo prevalecer a decisão da maioria daqueles que compõem o Conselho de Justiça. Digno de nota que, ainda que o controle difuso de constitucionalidade possa ser exercido a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição, devem ser respeitadas as normas processuais e constitucionais, não sendo admissível que o juiz auditor usurpe a competência do órgão colegiado. XIV – Seguindo essa mesma linha intelectiva, o Supremo Tribunal Federal, no HC nº 114.327/BA, denegou a ordem de habeas corpus, entendendo que invade a competência do Conselho Permanente da Justiça, nos termos do art. 28, V, da Lei 8.457/1992 (Lei de Organização Judiciária Militar), a decisão monocrática, proferida pelo juiz de direito, que reconhece a incompetência absoluta da Justiça Militar, após o recebimento da denúncia. No inteiro teor do julgado, esclarece-se, quando à competência, que “[...] após o recebimento da denúncia os atos decisórios, tais como os referentes a competência e ao mérito da causa competem ao Conselho de Justiça, cabendo ao Juiz-Auditor apenas praticar isoladamente os atos ordinários, os despachos de mero expediente e aqueles descritos no art. 30 da Lei 8.457/1992 [...]”. XV – O Superior Tribunal Militar, adotando idêntica orientação, anulou decisão do juiz auditor que arquivou um procedimento especial de deserção (STM, Correição Parcial 382420097060006/BA, Rel. Min. José Coêlho Ferreira, j. 09/02/2012, DJU 06/03/2012) (no mesmo sentido: RSE 0000173-19.2010.7.01.0401/RJ, Rel. Min. José Américo dos Santos, j. 28/04/2011, DJU 09/06/2011). XVI – Destaque-se, por oportuno, que não cabe a esta Turma Julgadora, sob risco de supressão de instância, a análise da recepção do art. 196 do Código Penal Militar pela Constituição Federal de 1988, e de todos os debates pertinentes a sua eventual inconstitucionalidade superveniente, tendo em vista que a matéria ainda não foi submetida ao órgão colegiado competente. XVII – Parecer da Procuradoria de Justiça, pelo conhecimento e provimento do Recurso de Apelação. XVIII – APELO CONHECIDO E PROVIDO, para reconhecer a nulidade da sentença proferida pelo juiz auditor de origem, determinando o prosseguindo do feito, com a realização da sessão de julgamento pelo Conselho Especial de Justiça. Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Criminal n.º 0312143-37.2017.8.05.0001, provenientes da Comarca de Salvador/BA, em que figuram, como Apelante, o Ministério Público do Estado da Bahia, e, como Apelada, Ingrid Taís Santos de Andrade. ACORDAM os Desembargadores integrantes da Colenda Segunda Turma da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, à unanimidade, em conhecer e DAR PROVIMENTO AO RECURSO DE APELAÇÃO, para reconhecer a nulidade da sentença proferida pelo juiz auditor de origem, determinando o prosseguindo do feito, com a realização da sessão de julgamento pelo Conselho Especial de Justiça, e assim o fazem pelas razões a seguir expostas no voto da Desembargadora Relatora.
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DA BAHIA
PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL 2ª TURMA
DECISÃO PROCLAMADA |
Conhecido e provido Por Unanimidade
Salvador, 29 de Agosto de 2023.
PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DA BAHIA Primeira Câmara Criminal 2ª Turma Apelação n.º 0312143-37.2017.8.05.0001 – Comarca de Salvador/BA Apelante: Ministério Público do Estado da Bahia Promotor de Justiça: Dr. Luís Cláudio Cunha Nogueira Apelada: Ingrid Taís Santos de Andrade Advogados: Dr. Vivaldo do Amaral Adaes (OAB/BA 13.540), Dr. Mateus Cardoso Coutinho (OAB/BA 24.952), Dra. Dominique Viana Silva (OAB/BA 36.217), Dra. Fernanda Freitas Guedes (OAB/BA 59.273) e Dra. Bianca Beatriz Barbosa da Cruz (OAB/BA 68.312) Origem: Vara de Auditoria Militar da Comarca de Salvador/BA Procurador de Justiça: Dr. Antônio Carlos Oliveira Carvalho Relatora: Desa. Rita de Cássia Machado Magalhães RELATÓRIO Cuida-se de Recurso de Apelação interposto pelo Ministério Público do Estado da Bahia, insurgindo-se contra a sentença proferida pelo Juiz Auditor da Vara de Auditoria Militar, que reconheceu, em controle difuso, a inconstitucionalidade do art. 196 do Código Penal Militar, absolvendo sumariamente a acusada Ingrid Taís Santos de Andrade. Em observância aos princípios da celeridade, da efetividade e da economia processual, e considerando ali se consignar, no que relevante, a realidade do processo até então desenvolvido, adota-se, como próprio, o relatório da sentença (id. 38113032), a ele acrescendo o registro dos eventos subsequentes, conforme a seguir disposto. Irresignado, o Ministério Público interpôs Recurso de Apelação, pugnando, em suas razões (id. 38113038), pela reforma da sentença e retomada do curso regular da ação penal, tendo em vista que a absolvição sumária, pelo princípio da especialidade, não é aplicável no âmbito da Justiça Militar, por ausência de previsão legal, sustentando, ainda, a constitucionalidade do art. 196 do CPM. Nas contrarrazões, pugna a defesa da ré pela manutenção da sentença objurgada (id. 38113041). Parecer da douta Procuradoria de Justiça pelo conhecimento e provimento do Recurso de Apelação (id. 39938945). É o relatório.
PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DA BAHIA Primeira Câmara Criminal 2ª Turma Apelação n.º 0312143-37.2017.8.05.0001 – Comarca de Salvador/BA Apelante: Ministério Público do Estado da Bahia Promotor de Justiça: Dr. Luís Cláudio Cunha Nogueira Apelada: Ingrid Taís Santos de Andrade Advogados: Dr. Vivaldo do Amaral Adaes (OAB/BA 13.540), Dr. Mateus Cardoso Coutinho (OAB/BA 24.952), Dra. Dominique Viana Silva (OAB/BA 36.217), Dra. Fernanda Freitas Guedes (OAB/BA 59.273) e Dra. Bianca Beatriz Barbosa da Cruz (OAB/BA 68.312) Origem: Vara de Auditoria Militar da Comarca de Salvador/BA Procurador de Justiça: Dr. Antônio Carlos Oliveira Carvalho Relatora: Desa. Rita de Cássia Machado Magalhães VOTO Cuida-se de Recurso de Apelação interposto pelo Ministério Público do Estado da Bahia, insurgindo-se contra a sentença proferida pelo Juiz Auditor da Vara de Auditoria Militar, que reconheceu, em controle difuso, a inconstitucionalidade do art. 196 do Código Penal Militar, absolvendo sumariamente a acusada Ingrid Taís Santos de Andrade. Narra a peça acusatória, in verbis (ids. 38112082-38112083): “[…] que, em 13 de outubro de 2011, o comando do BPChq expediu portaria em IPM nº Correg, Setorial – 015/10/2011, designando a TEN PM Ingrid Taís Santos de Andrade, para apurar suposta prática de crime praticado por policiais militares em 26 de agosto de 2011. Porém, a oficiala, desidiosamente, descumpriu os prazos legais. Consta do conjunto probatório, que a encarregada comunicou o início dos trabalhos do citado IPM no dia 03/10/2012, e somente em 21/03/13 solicitou ao DPT, cópia do Laudo cadavérico do vitimado, peça imprescindível ao deslinde das investigações, o que foi atendido no mês seguinte, sendo então confeccionado relatório conclusivo em 15/04/13. Não obstante o lapso temporal, que ficou na posse dos autos, diligências indispensáveis deixaram de ser cumpridas, o que motivou a baixa dos autos pela Corregedoria Geral em 17/09/2013, sendo recebida pela encarregada no dia 02/10/13. No entanto, as investigações foram reiniciadas no dia 17/11/14, após solicitação da oficiala, em 06/11/2014, de afastamento das atividades por 05 (cinco) dias, para conclusão da apuração (fl. 53). Porém, embora tenha sido concedido dispensa das atividades ordinárias, a denunciada somente concluiu os trabalhos em 15/04/16, quando elaborou relatório final e encaminhou os autos à Corregedoria geral. Em vista do exposto, cumpridas as formalidades legais pertinentes, tem-se configurado o crime descrito no art. 196, § 1º do Código Penal Militar […]”. Em suas razões de inconformismo, em apertada síntese, pugna o Apelante pela reforma da sentença e retomada do curso regular da ação penal, tendo em vista que a absolvição sumária, pelo princípio da especialidade, não é aplicável no âmbito da Justiça Militar, por ausência de previsão legal, sustentando, ainda, a constitucionalidade do art. 196 do CPM. Preenchidos os pressupostos de admissibilidade recursal, conhece-se do Apelo. Merece acolhimento a pretensão ministerial para que seja reconhecida a nulidade da sentença proferida pelo Juiz a quo, por violação às normas e regras, legais e constitucionais, pertinentes à competência e ao devido processo legal no âmbito da Justiça Militar. Analisando os autos, verifica-se que o MM. Juiz de Direito a quo, atuando como Juiz Auditor da Vara de Auditoria Militar da Comarca de Salvador/BA, após o término da instrução processual e apresentação das alegações finais, por ambas as partes, prolatou, monocraticamente, sentença em que reconheceu a inconstitucionalidade do art. 196 do Código Penal Militar, sob o argumento de que o dispositivo legal fere o princípio da taxatividade, sendo demasiadamente aberto acerca da elementar “missão”. Em virtude disso, o magistrado de origem absolveu sumariamente a ré, nos seguintes termos: “[...] Data maxima venia, este Juízo discorda do parecer do Parquet e mantém, como já firmado em precedentes julgados nesta Vara de Auditoria Militar, o reconhecimento incidenter tantum da inconstitucionalidade do art. 196 do CPM (descumprimento de missão), assentado na doutrina e nos fundamentos que se seguem. [...] O dispositivo do art. 196 do CPM (descumprimento de missão) é inconstitucional por violar o princípio da reserva legal e por ausência de determinação da elementar “missão”, termo carregado de generalidade semântica, sendo, portanto, um tipo penal que, por excessivamente aberto, traz variados sentidos em sua compreensão - o que importa em ofensa à taxatividade legal. Diante da configuração da inconstitucionalidade incidenter tatum reconhecida, firma-se a ausência de justa causa para prosseguimento da ação penal e o arquivamento é medida que se impõe. Ante o exposto, portanto, deixo de acolher o opinativo ministerial e reconhecendo, no controle difuso que cabe ao Poder Judiciário, a inconstitucionalidade do art. 196 do COM (descumprimento de missão), por violar a taxatividade e o princípio da reserva legal, ABSOLVO SUMARIAMENTE a Acusada 1º Ten PM INGRID TAÍS SANTOS DEANDRADE, eis que afastada a antijuridicidade do delito, por ausência de justa causa para o prosseguimento da ação penal, determinando-se que, após o trânsito em julgado, sejam arquivados os presentes autos, ressalvada a responsabilidade residual administrativa a ser apurada por autoridade competente [...]”. (sentença, id. 38113032) Inicialmente, no que concerne à possibilidade de aplicação da absolvição sumária, introduzida no Código de Processo Penal pela Lei nº 11.719/2008, no âmbito da Justiça Militar, já se manifestou contrariamente o Superior Tribunal Militar, em decisão unânime, nos seguintes termos: “[…] 1. As alterações promovidas pela Lei nº 11.719/08 dizem respeito apenas ao Código de Processo Penal e não ao Código de Processo Penal Militar. Precedentes do STM. Inteligência da Súmula nº 15 do STM. 2. A competência para decidir qualquer questão de fato ou de direito suscitada durante a instrução criminal é do Conselho de Justiça, conforme o art. 28, V, da Lei de Organização Judiciária Militar. 3. Preliminar acolhida para declarar a nulidade do processo, a partir da Decisão que absolveu sumariamente o réu, com o retorno dos autos ao Juízo de origem para prosseguimento do Feito […]” (STM, AP nº 00000365920137010101/RJ, Relator: Lúcio Mário de Barros Góes, Data de Julgamento: 21/08/2014, Data da Publicação no DJE: 05/09/2014). O procedimento do Código de Processo Penal Militar, aplicável aos crimes apenados com reclusão e detenção, encontra-se previsto no seu art. 384 ao art. 450, podendo ser resumido da seguinte forma: 1 – Oferecimento da denúncia; 2 – Recebimento ou rejeição da denúncia; 3 – Citação; 4 – Convocação do Conselho Permanente de Justiça ou sorteio e posse do Conselho Especial de Justiça; 5 – Instrução criminal com a oitiva da vítima, inquirição das testemunhas e interrogatório do réu; 6 – Requerimento de diligências; 7 – Alegações Finais; 8 – Sessão de julgamento; 9 – Leitura da sentença em sessão pública (Rosseto, Enio Luiz. Curso de processo penal militar [livro eletrônico], 1ª ed. - São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021). Verifica-se, portanto, que não há previsão legal de absolvição sumária no Código de Processo Penal Militar, devendo o feito, após a conclusão da instrução processual, ser encaminhado para alegações finais e, em seguida, para sessão de julgamento, havendo jurisprudência consolidada do Superior Tribunal Militar, do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que, pelo princípio da especialidade, prevalecem as regras da codificação militar. Ademais, segundo o STF: “[...] não se pode mesclar o regime penal comum e o castrense, de modo a selecionar o que cada um tem de mais favorável ao acusado, devendo ser reverenciada a especialidade da legislação processual penal militar e da justiça castrense, sem a submissão à legislação processual penal comum do crime militar devidamente caracterizado [...]” (STF, HC 122673/PA, Relator: Min. CÁRMEN LÚCIA, Segunda Turma, Publicação: DJe 01-08-2014) (no mesmo sentido: STJ, HC 165042/RS, Relator: Ministro NEFI CORDEIRO, T6 - SEXTA TURMA, Publicação: DJe 25/02/2016; STM, HC 00001108420157000000/MS, Relator: Fernando Sérgio Galvão, Publicação DJe: 10/08/2015). Incabível, assim, a absolvição sumária procedida pelo magistrado de origem, por violação ao devido processo legal e ao princípio da especialidade. Seguindo essa mesma linha intelectiva, manifestou-se a Douta Procuradoria de Justiça (id. 39938945): “[…] A inaplicabilidade do Código de Processo Penal no âmbito da Justiça Militar justifica-se pelo fato de ser aplicável, na Justiça Castrense, o Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001/69) e o Código de Processo Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.002/69). E, nesse ponto, é importante destacar que o próprio estatuto processual penal militar prevê a possibilidade de os casos omissos serem supridos pela legislação de processo penal comum, quando aplicável ao caso concreto e somente em não havendo prejuízo da índole do processo penal militar (CPPM, art. 3º, alínea “a”). Acerca da impossibilidade da absolvição sumária, em se tratando de crime militar, já se posicional o Superior Tribunal Militar, de forma unânime e reiteradas vezes […]”. Outrossim, a competência da Justiça Militar está prevista entre os arts. 122 e 125 da Constituição Federal de 1988, cabendo à Justiça Militar estadual o processamento e julgamento dos militares dos Estados, pela prática dos crimes militares definidos em lei. A partir da Emenda Constitucional nº 45/2019, passaram a existir dois órgãos de jurisdição na Justiça Militar de primeiro grau: o juiz de direito do juízo militar, a quem compete o julgamento dos delitos militares contra civis e as ações contra atos disciplinares militares; e o Conselho de Justiça, sob a presidência do juiz de direito, a quem compete os demais crimes militares (art. 125, §§ 4º e 5º, CF/1988). Acerca dos Conselhos de Justiça, esclarece Enio Luiz Rosseto serem órgãos de “[...] composição mista e de maioria militar, presididos pelo juiz de direito e integrados por quatro oficiais militares. Se o acusado for oficial, são sorteados para o Conselho Especial de Justiça quatro oficiais militares de posto e patente superiores ao oficial acusado ou, no caso de igualdade de posto e patente, mais antigo. Ao menos um dos juízes militares deve ser oficial superior (major, tenente-coronel ou coronel). [...] O Conselho Permanente de Justiça julga praças. Entre os oficiais que o compõe um deles deve ser superior e os demais de posto de tenente ou capitão [...]”. (Rosseto, Enio Luiz. Curso de processo penal militar [livro eletrônico], 1ª ed. - São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021) Na hierarquia da Polícia Militar são oficiais superiores o coronel, o tenente-coronel e o major; oficial intermediário o capitão; e oficiais subalternos o 1ª e o 2º tenentes (Cartilha da Justiça Militar, TJ/BA, 2019), razão pela qual, no caso em tela, foi formado um Conselho Especial de Justiça para processamento e julgamento da acusada, tenente da Polícia Militar (id. 38112941). Trata-se de competência de órgão colegiado e, portanto, subjetivamente complexa ou plúrima, não podendo o juiz singular, em decisão monocrática, reconhecer a inconstitucionalidade da norma que tipifica o crime, absolvendo o réu. De fato, nos termos do § 2º do art. 438 do CPPM, cabe ao juiz togado redigir a sentença, ainda que discorde dos seus fundamentos ou da sua conclusão, podendo, entretanto, justificar o seu voto, se vencido, no todo ou em parte, após a assinatura. A redação do dispositivo esclarece que o juiz auditor é apenas um dentre os cinco julgadores, devendo prevalecer a decisão da maioria daqueles que compõem o Conselho de Justiça. Digno de nota que, ainda que o controle difuso de constitucionalidade possa ser exercido a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição, devem ser respeitadas as normas processuais e constitucionais, não sendo admissível que o juiz auditor usurpe a competência do órgão colegiado. Seguindo essa mesma linha intelectiva, o Supremo Tribunal Federal, no HC nº 114.327/BA, denegou a ordem de habeas corpus, entendendo que invade a competência do Conselho Permanente da Justiça, nos termos do art. 28, V, da Lei 8.457/1992 (Lei de Organização Judiciária Militar), a decisão monocrática, proferida pelo juiz de direito, que reconhece a incompetência absoluta da Justiça Militar, após o recebimento da denúncia. No inteiro teor do julgado, esclarece-se, quanto à competência, que “[...] após o recebimento da denúncia os atos decisórios, tais como os referentes a competência e ao mérito da causa competem ao Conselho de Justiça, cabendo ao Juiz-Auditor apenas praticar isoladamente os atos ordinários, os despachos de mero expediente e aqueles descritos no art. 30 da Lei 8.457/1992 [...]”. Destacam-se os seguintes trechos do precedente judicial: “[...] 2. A competência para decidir sobre exceção de incompetência na Justiça Militar, após o recebimento da denúncia, é do Conselho Permanente de Justiça, nos termos do art. 28, V, da Lei 8.457/1992 (Lei de Organização Judiciária Militar). 3. O Superior Tribunal Militar, no caso sub examine, deu provimento ao recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público Militar para declarar nula, por usurpação de competência do Conselho de Justiça, a decisão monocrática de Juiz-Auditor que, após o recebimento da denúncia, declarou a incompetência da Justiça Militar para processar e julgar civil por saque indevido de pensão após a morte do beneficiário. [...] 5. In casu, o paciente foi denunciado pela prática do crime de estelionato, tipificado no art. 251 do Código Penal Militar, em razão de ter continuado a receber proventos de aposentadoria de beneficiário falecido, por isso, na linha do recente julgado desta Turma, a competência para julgá-lo é da Justiça Militar, à luz do art. 9º, III, a, do CPPM, porquanto os recursos destinados ao pagamento de pensionistas são afetos à administração militar. 6. Ordem denegada [...]”. (STF, HC 114327/BA, Relator: Min. LUIZ FUX, Data de Julgamento: 21/05/2013, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-105 DIVULG 04-06-2013 PUBLIC 05-06-2013) O Superior Tribunal Militar, adotando idêntica orientação, anulou decisão do juiz auditor que arquivou um procedimento especial de deserção (STM, Correição Parcial 382420097060006/BA, Rel. Min. José Coêlho Ferreira, j. 09/02/2012, DJU 06/03/2012) (no mesmo sentido: RSE 0000173-19.2010.7.01.0401/RJ, Rel. Min. José Américo dos Santos, j. 28/04/2011, DJU 09/06/2011). Citam-se os mencionados julgados: “EMENTA. CORREIÇÃO PARCIAL AJUIZADA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO MILITAR. RELAÇÃO JURÍDICA PROCESSUAL APERFEIÇOADA COM O RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. INSPEÇÃO DE SAÚDE DO DESERTOR QUE O CONSIDERA INCAPAZ PARA O SERVIÇO MILITAR, DURANTE A INSTRUÇÃO CRIMINAL.ARQUIVAMENTO DA IPD POR DECISÃO DO JUIZ-AUDITOR. IMPOSSIBILIDADE. ATO DE COMPETÊNCIA DOS CONSELHOS DE JUSTIÇA. NULIDADE DA DECISÃO MONOCRÁTICA. I - Configura-se error in procedendo a atuação singular do Juiz-Auditor no sentido de determinar o arquivamento do feito, após a notícia de que o desertor foi considerado incapaz para o Serviço Militar pela Junta Médica. II - Pela sistemática processual penal militar, uma vez aperfeiçoada a relação jurídica processual, com o recebimento da Exordial acusatória, qualquer decisão do Juízo de origem tendente a extinguir o feito com ou sem o julgamento do mérito compete ao colegiado e não ao Juiz-Auditor. Isso porque, em Juízo de cognição penal, pela dicção do art. 28, inciso V, da Lei nº 8.457, de 4 de setembro de 1992, todas as decisões envolvendo questões de direito e de fato no curso da instrução criminal são de competência dos Conselhos de Justiça. III - Anula-se a Decisão ora vergastada, baixando os autos à apreciação do Conselho de Justiça competente. Correição Parcial deferida. Decisão unânime”. (STM - CP: 382420097060006 BA 0000038-24.2009.7.06.0006, Relator: José Coêlho Ferreira, Data de Julgamento: 09/02/2012, Data de Publicação: 06/03/2012 Vol: Veículo: DJE) “RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. REJEIÇÃO DE DENÚNCIA. FURTO ATENUADO. PEQUENO VALOR DO BEM SUBTRAÍDO. AVALIAÇÃO MONOCRÁTICA DO JUIZ-AUDITOR. IMPOSSIBILIDADE. SUPRESSÃO DE COMPETÊNCIA DO CONSELHO DE JUSTIÇA. REFORMA DA DECISÃO. PRESENÇA DOS REQUISITOS DOART. 77 DO CPPM. A regra contida no art. 240, § 1º, do CPM (furto atenuado), adotada pelo ilustre Juiz-Auditor como razão para rejeitar a denúncia, somente poderia ser avaliada pelo Conselho Permanente de Justiça, por ocasião da prolação de sentença de mérito, uma vez que o próprio dispositivo legal é taxativo ao dispor que "... o juiz pode substituir a pena ...", dando a entender que tal operação deva ocorrer no momento da imposição da pena, ou seja, durante o julgamento. Em preenchendo a denúncia os requisitos elencados no art. 77 da Lei de Ritos Militar, erige-se como medida imperiosa o recebimento da peça acusatória, seguido pela baixa dos autos à instância de origem para o regular curso da persecução penal. Decisão unânime. (STM - RSE: 1731920107010401 RJ 0000173-19.2010.7.01.0401, Relator: José Américo dos Santos, Data de Julgamento: 28/04/2011, Data de Publicação: 09/06/2011 Vol: Veículo: DJE) Destaque-se, por oportuno, que não cabe a esta Turma Julgadora, sob risco de supressão de instância, a análise da recepção do art. 196 do Código Penal Militar pela Constituição Federal de 1988, e de todos os debates pertinentes à sua eventual inconstitucionalidade superveniente, tendo em vista que a matéria ainda não foi submetida ao órgão colegiado competente. Ante o exposto, voto no sentido de conhecer e DAR PROVIMENTO AO RECURSO DE APELAÇÃO, para reconhecer a nulidade da sentença proferida pelo juiz auditor de origem, determinando o prosseguindo do feito, com a realização da sessão de julgamento pelo Conselho Especial de Justiça. Sala das Sessões, ____ de ______________de 2023. Presidente Desa. Rita de Cássia Machado Magalhães Relatora Procurador(a) de Justiça